Atlântida foi projectado para ter sete suites, acabou por ter 20 e mais sete camarotes quádruplos
Estaleiros de Viana tiveram dúvidas sobre a fiabilidade dos valores do projecto do Atlântida logo no início da construção. Pediram novos testes, mas russos tinham deitado fora o modelo. Viana decidiu continuar, mesmo assim.
O navio de luxo que não serviu à Atlânticoline tem alojamento de grande qualidade, como o PÚBLICO constatou quando esteve a bordo do Atlântida em Março de 2011. Tem salão, casino, pista de dança, restaurante e infantário. Condições que agradaram a Hugo Chávez, quando visitou os ENVC em 2010. Decidiu comprar o navio por 42,5 milhões de euros para operar na rota entre o porto de La Guaira e as ilhas de Orchila, Los Roques e Margarita, mas o negócio não se concretizou. A desistência foi confirmada em Novembro de 2011. O investimento necessário para as alterações exigidas pela Venezuela pesou no fracasso do negócio. A adaptação a navio cruzeiro, para fins turísticos, previa a eliminação do parque de viaturas para a criação de camarotes para 300 pessoas. Houve mais interessados, por exemplo armadores canadianos e gregos, mas o navio nunca conseguiu zarpar do cais talvez pelas características específicas que apresenta, feitas à medida do cais dos Açores. A porta de ré, para acesso das viaturas, com abertura lateral, é disso exemplo. Mas há outras. O calado do navio, específico para as condições de mar e de cais dos Açores, acabou por contribuir para o impasse em que se encontra há quase cinco anos.
De acordo com o acompanhamento que o PÚBLICO fez deste caso e do que conseguiu apurar junto de várias fontes ligadas ao processo, os problemas com a construção dos dois ferryboats que a Atlânticoline entregou em 2006 aos Estaleiros Navais de Viana do Castelo surgiram ainda os navios não passavam de um esboço.
O anteprojecto, documento determinante para o caderno de encargos do concurso público internacional que viria a ser lançado, foi encomendado pela transportadora pública do arquipélago aos russos da Petrovalt. Nesse esboço constavam os resultados do tanque-teste, uma das peças fundamentais do concurso público, elaborados por um instituto russo. Esses tanque-teste (modelo em madeira, à escala do navio, para a realização de testes em tanque) deram a indicação de que aquele navio, com a potência das máquinas prevista e com aquele perfil de casco, iria atingir os 21 nós (quase 40km/h).
Açores sugerem russos
Quando os ENVC vencem o concurso público, por sugestão do armador recorrem à Petrovalt para a elaboração do projecto. Pesou na decisão o facto de o gabinete já ter elaborado o esboço do navio e da escolha de outra solução poder colocar em causa o prazo apertado para a entrega do Atlântida , prevista para Setembro de 2008 antes das eleições legislativas regionais nos Açores que iam ocorrer em Outubro.
Ainda na fase inicial de construção surgem as primeiras dúvidas sobre a fiabilidade dos valores do tanque-teste. As curvas fornecidas por esses testes e que servem de elemento de cálculo e verificação ao longo do desenvolvimento do projecto pareciam não estar correctas. Os ENVC tentam repetir as provas, mas quando contactam o instituto russo que as elaborou são informados que o modelo havia sido destruído, situação que contraria a prática comum neste tipo de teste, em que o modelo é preservado por um período de cinco anos. Apesar de impossibilitada de comprovar os resultados iniciais, a empresa prossegue a construção.
Perante a evidência da falta de estabilidade do navio com seis pisos e capacidade para transportar 750 passageiros e 140 viaturas, os ENVC são forçados a introduzir alterações estruturais que contribuíram para o peso de deslocamento do navio, comprovados na fase de flutuação. O navio deveria ter apresentado um calado de imersão de 4,6 metros, mas atingiu os cinco metros.
Mas nem tudo se resume às alegadas incorrecções no projecto da construção número 258 dos ENVC. A pedido do armador, foram introduzidas alterações que também tiveram impacto no desfecho da construção. No projecto inicial estava prevista a criação de sete suites. A pedido da Atlânticoline o navio passou a ter 20 e mais sete camarotes quádruplos.
Para cumprir esse pedido, os ENVC reposicionaram as unidades de ar condicionado e o gerador de emergência, máquinas que chegam a pesar toneladas face à dimensão do navio. O equipamento foi colocado dois decks (dois pavimentos) acima do previsto, mudança que implicou uma subida do centro de gravidade da embarcação. Para recuperar a estabilidade, os estaleiros tiveram que introduzir 130 toneladas de lastro sólido para baixar o centro de gravidade do Atlântida.
Também a pedido da Atlânticoline é substituído um impulsor de proa de 800 Kwh por dois de 600 Kwh cada. Esta substituição naturalmente contribuiu ainda mais para o aumento de peso e também do atrito na deslocação na água e, por consequência, para a redução da velocidade.
A capacidade da zona de estacionamento das viaturas foi igualmente alvo de mudanças pedidas pelo armador, o que implicou alterações estruturais de aço significativas, também com repercussões no peso. A capacidade prevista no projecto inicial apontava para 12 minibus. Este número caiu para oito para aumentar o número de viaturas ligeiras. No total, a embarcação passou a poder transportar 127.
Concluída a construção, conturbada, são realizadas as primeiras provas de mar. Os testes vieram confirmar o impacto das alterações que foram sendo introduzidas. O Atlântida atingiu uma velocidade de 16,5 nós a 85% da potência do motor.
O documento denominado "Ship Speed and Power Measuremenst on MV Atlântida", com o número NB-EE 2009.048 B, indica que o Atlântida atingiu uma velocidade máxima de 17,78 nós, quando usava 100% da potência dos seus dois motores.
O contrato entre os ENVC e o governo dos Açores exigia uma velocidade de 19 nós a 85% da potência dos motores, admitindo que o navio poderia ser aceite, se atingisse uma velocidade entre 18 e 19 nós, definindo para o caso cláusulas indemnizatórias. Mesmo usando 90% da potência, 5% acima do acordado, nos testes realizados pela Germanischer Lloyd o navio apenas conseguiu navegar a 17,13 nós. Na sequência destes resultados, os ENVC repetiram os testes por duas vezes, uma com o acompanhamento da Atlânticoline e outra novamente com recurso à Germanischer Lloyd, não tendo o navio conseguido atingir os requisitos contratuais em nenhuma das ocasiões.
Para não cair nos mesmos erros com o Anticiclone, cuja construção foi iniciada com o Atlântida mais ou menos a meio, os ENVC decidiram repetir os tanque-teste. Os novos valores alcançados determinaram um aumento de 10 metros no comprimento do segundo ferry e 60 centímetros na largura, tudo para lhe garantir a estabilidade que faltou ao Atlântida. Ainda foram construídos os blocos do Anticiclone, mas com a rescisão do contrato, em Maio de 2009, os trabalhos foram abandonados até hoje.
Um contrato, três administrações
Da encomenda à rejeição pelos Açores o negócio do ferryboat Atlântida passou por três administrações dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo (ENVC). Tudo começou em Abril de 2006 com a assinatura do contrato para a construção de dois ferryboats para assegurar as ligações interilhas do arquipélago.
O Atlântida foi concluído e rejeitado, o Anticiclone ficou pela fase de blocos. O primeiro está ancorado há quase cinco anos, primeiro no cais de amarração do Bugio dos ENVC, depois na Base Naval do Alfeite em Lisboa. O ferry custa, em juros trimestrais, 530 mil euros, pelo empréstimo contraído para devolver as verbas recebidas pela sua construção. O outro, o Anticiclone é hoje um monte de sucata enferrujada.
O negócio com a Atlânticoline foi formalizado por Telles Menezes, na altura administrador dos ENVC e também da Empordef. Era presidente do conselho de administração dos estaleiros Fernando Geraldes, escolhido por Paulo Portas, no tempo em que foi ministro da Defesa do Governo PSD-CDS/PP liderado por Pedro Santana Lopes.
Em Abril de 2007, já com José Sócrates no poder e com a Defesa nas mãos de Nuno Severiano Teixeira, Arnaldo Navarro Machado, um arquitecto naval, ex-quadro da EDP, da antiga Setenave e da Central de Cervejas, foi o homem que assumiu a presidência dos ENVC e, posteriormente, da holding estatal que tutela os ENVC. Acompanhou toda a construção do Atlântida, mas saiu da empresa cerca de três meses antes da rescisão do contrato pela Atlânticoline.
Apenas sete meses depois de ter entrado nos estaleiros, Navarro Machado trocou a empresa pública pelo privado e regressou à EDP para o sector das energias renováveis. A saída inesperada deixou os ENVC sem administrador durante vários meses até à entrada de António Jorge Rolo em Fevereiro de 2009. Gestor de formação, Rolo chegou a admitir a possibilidade de terem sido cometidos erros no processo de construção do Atlântida e reconheceu a necessidade de ser reconstituído todo o processo.
“É preciso saber que erros foram cometidos para que, com a lição aprendida, se evitem situações futuras”, dizia Jorge Rolo em Abril de 2009. Um mês depois, o mesmo responsável começou a negociar com a transportadora açoriana as bases do acordo para a rescisão do contrato celebrado em Dezembro do mesmo ano. Os ENVC ficaram com os dois navios, devolvendo as verbas já pagas pelos Açores, cerca de 40 milhões de euros. A última tranche, no valor de mais 7,9 milhões de euros, continua por liquidar, fruto das dificuldades económicas que os estaleiros começaram a enfrentar.
O Atlântida já esteve avaliado em mais de 40 milhões de euros, agora valerá 20 milhões no mercado. À espera de comprador há quase cinco anos, representou um rombo de 70 milhões de euros nas contas dos ENVC. Esta semana, vai a concurso público internacional. O caderno de encargos não prevê valor-base de licitação e terá como critério a melhor proposta financeira. O processo deverá durar um mês.
Segundo fonte do Ministério da Defesa, no final da semana passada estava a ser ultimada a constituição do júri do concurso.