O mundo está atento à “próxima grande indústria americana”
A legalização da venda e do consumo da cannabis no Colorado e em Washington abriu as portas a um novo mercado, que pode facturar centenas de milhões de euros só este ano.
A proposta foi afixada numa das paredes da redacção, em Novembro, e tornou-se rapidamente num dos assuntos mais quentes no Twitter, depois de um dos jornalistas da casa ter partilhado uma fotografia do texto: “<i>The Denver Post</i> está a contratar um editor para coordenar a criação e a manutenção de um site sobre o uso de marijuana para fins recreativos.”
Os eleitores do Colorado tinham acabado de aprovar em referendo a legalização do consumo e da venda de cannabis para fins recreativos a maiores de 21 anos de idade, tornado-se no segundo estado norte-americano a fazê-lo, juntamente com Washington. Com uma lei um pouco mais ambiciosa do que os seus compariotas da costa Oeste, os habitantes do Colorado vivem agora – desde o dia 1 de Janeiro – no território mais permissivo do mundo em relação ao consumo e venda de cannabis.
Apesar das candidaturas expontâneas ao cargo de “editor de erva” de The Denver Post que explodiram nas redes sociais, a oferta era interna: o escolhido foi Ricardo Baca, um jornalista experiente que passara os últimos 15 anos a escrever sobre música. Ao PÚBLICO, Ricardo Baca explicou o que representa o facto de um jornal de grande circulação (mais de 415.000 exemplares por dia) ter sentido a necessidade de acompanhar diariamente a informação sobre o consumo e venda de cannabis.
“A decisão de The Denver Post de criar um site e a nomeação de um editor é uma indicação clara do potencial que existe para a criação de um novo mercado. Muitas pessoas consideram que a venda legal de cannabis será a próxima grande indústria americana.”
É tudo muito recente, mas as estimativas apontam para centenas de milhões de dólares só no primeiro ano após a legalização. “Prevê-se que, só no Colorado, o montante dos impostos recolhidos devido a esta actividade ultrapasse os 40 milhões de dólares em 2014, que serão investidos na construção de escolas, por exemplo”, diz o editor do The Denver Post. Foi essa a troca proposta pelos defensores da legalização aos eleitores do Colorado. Quem tem mais de 21 anos de idade pode consumir livremente, desde que não seja em locais públicos; e quem quiser aproveitar a criação de um novo mercado, pode vender em espaços comerciais regulamentados. O dinheiro dos impostos vai para as escolas e o tempo gasto pela polícia a perseguir os consumidores é dedicado à criminalidade mais violenta.
À margem da lei federal
O problema é que a lei do estado do Colorado está à margem da lei federal. Como a cannabis figura na lista de substâncias ilegais do Departamento de Justiça norte-americano, os bancos do Colorado não arriscam fazer negócios com os exploradores da “próxima grande indústria americana”, como lhe chama o jornalista Ricardo Baca.
O procurador-geral dos EUA, Eric Holder, anunciou há duas semanas que esse problema seria resolvido “em breve”, mas nem disse quando, nem explicou como. “Esse é um dos principais problemas”, diz Baca. “E ninguém sabe se será resolvido daqui a duas semanas, ou ainda em 2014.”
Apesar de todos os nós que ainda estão por desatar, as sondagens nos EUA e as políticas seguidas em vários países da América Latina sinalizam uma tendência favorável à legalização. Pela primeira vez na História, a maioria dos norte-americanos defende a legalização do consumo de cannabis para fins recreativos, de acordo com sondagens de institutos como o Pew Research Center e a Gallup.
E o que se passa na Europa, enquanto na América se discute a legalização? Vamos por partes. Recentemente, o Uruguai e os estados norte-americanos do Colorado e de Washington legalizaram a venda de cannabis. E o Presidente Barack Obama, um fumador confesso de marijuana nos tempos de escola, fez as declarações mais simbólicas a propósito deste tema: legalizar a “‘cannabis’ é uma questão de justiça social”; “fumar marijuana não é mais perigoso do que o álcool”.
Há duas semanas, no Fórum Económico Mundial, Kofi Annan dizia: “As drogas destruíram muita gente, mas as políticas erradas dos governos destruíram muitas mais”. O ex-secretário-geral das Nações Unidas juntou-se a um número cada vez mais crescente de pessoas que admite, sem hesitação, que é necessário acabar com o encarceramento de consumidores e que a legalização adoptada naqueles dois estados norte-americanos é “apenas um passo”.
O caso português
Quando Obama, Annan, Fernando Henrique Cardoso (que preside à Comissão Global de Políticas sobre Drogas) ou Jorge Sampaio clamam por outras políticas sobre as drogas, não será porque algo está definitivamente a mudar? Será possível, e desejável, fazê-lo também em Portugal e no resto da Europa? Será a legalização uma tendência internacional?
Descriminalizar o consumo de droga em Portugal, em 2001, durante um Governo de António Guterres e com Jorge Sampaio em Belém, foi uma estratégia adoptada para resolver o que aparentemente não era resolúvel: como lidar com uma população prisional repleta de consumidores ou de pequenos consumidores-traficantes e com elevadas taxas de HIV e hepatite entre um conjunto substancial de pessoas que se injectavam por via endovenosa.
Descriminalizar o consumo, na sequência de um plano estratégico que substitui o discurso do senso comum por um discurso de base científica, retirou ao toxicodependente o estatuto de criminoso e substitui-o pelo do doente. É esta "visão humanista" do consumo de drogas, como por vezes se lhe chama, que tem justificado elogios à política portuguesa e prémios e reconhecimento a alguns do seus protagonistas.
"Portugal foi pioneiro na descriminalização do consumo de droga e constitui um laboratório onde inúmeros países europeus têm vindo perceber os efeitos práticos da medida", disse ao PÚBLICO João Goulão. Na sua qualidade de director-geral do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) e presidente do Conselho da Administração do Observatório Europeu das Drogas e da Toxicodependência (OEDT), Goulão acrescenta que a "atitude europeia é a de perceber se a legalização do consumo de cannabis no Uruguai e em dois estados dos EUA tem efeitos positivos". Na mesma linha prudente, Goulão observa que, na actual conjuntura, a "Europa não estará muito disponível" para adoptar políticas de legalização e que estará mais empenhada na tal "visão humanista", numa "abordagem inspirada pela estratégia portuguesa".
Há, no entanto, um factor recente que obriga a encarar o consumo de cannabis com outra atenção. Em Portugal, os últimos dados referem que a cannabis ultrapassou a heroína entre os casos de consumidores que procuram tratamento, algo que não é inédito em outros países europeus, onde o seu consumo está mais generalizado. O relatório anual de 2012 “A Situação do País em Matéria de Drogas e Toxicodependência”, apresentado pelo SICAD em Dezembro, confirma a heroína como responsável por 84 por cento dos casos tratados em ambulatório, mas ressalva que, nesse ano, o número de novos consumidores a iniciar tratamento por cannabis foi de 38 por cento, ao passo que a heroína foi responsável por 34 por cento.
A sanção administrativa aplicada aos consumidores de droga em Portugal, que implica uma passagem pelas comissões de dissuasão, contribui, acreditam os responsáveis do SICAD, para que os consumidores "reflictam sobre os seus próprios consumos". Eles, os consumidores, "acabam por assumir que a cannabis não é tão inócua quanto se pensa", conclui Goulão, uma vez que aquela substância é hoje "psicoactivamente mais poderosa" do que alguma vez foi, fruto das possibilidades de manipulação de que pode ser objecto o seu princípio activo (THC).
A legalização da cannabis, agora que a droga foi paulatinamente deixando de estar na agenda política do país, é uma batalha avulsa e irregular por parte de uma ou outra juventude partidária e por insistência do Bloco de Esquerda. O partido de João Semedo e Catarina Martins defende a legalização do consumo e não só: a possibilidade do seu cultivo para consumo pessoal e a criação de "clubes sociais" (associações que se dediquem ao estudo, investigação, debate, mas também ao cultivo devidamente autorizado).
Tendência internacional?
Não obstante, existem iniciativas de cidadania europeia com esse objectivo e que procuram reunir um milhão de assinaturas para pedir uma alteração legal na União Europeia. Jakob Huber, director do Contact Netz, uma organização que se dedica à prevenção e redução de riscos e que criou a primeira sala de injecção assistida, na Suíça, é claro: "A proibição falhou" e é "necessário adoptar a regulação das substâncias e descriminalização dos consumidores". O que Huber defende é a regulação e não a legalização. "Falo de regulação legal, à semelhança do álcool. Mas podemos regular melhor, por exemplo, proibir, nos dois casos, o marketing e a publicidade a estes produtos.”
Para todos os efeitos, como nota Danilo Ballotta, especialista em políticas de droga do OEDT, "nunca na história das políticas das drogas, desde o primeiro acordo internacional, em Xangai, em 1902, posições tão distintas do quadro legal previamente em vigor tinham resultado em normas para legalizar uma droga, incluindo a produção e venda”. Danilo relaciona a recente afirmação de Barack Obama com o memorando do vice-procurador-geral norte-americano James Cole, enviado a todos os procuradores e forças policiais federais dos EUA a 29 de Agosto passado, no qual assume uma vontade política de permitir a experiência nos dois estados, apesar da oposição da lei federal.
Doze dias depois, em resposta ao senador Patrick Leahy, presidente da Comissão de Assuntos Judiciais do Senado, James Cole explicou que era preferível que o dinheiro da droga fosse canalizado para a cobrança fiscal em vez de destinado ao crime organizado, com o Estado a regular o cultivo e a venda da substância.
Um segundo factor pode resultar desta mudança de atitude: a população vai tomar consciência de que as autoridades policiais vão ter "mais tempo para combater a criminalidade", e não os consumidores, e que o dinheiro que resulte da legalização pode ser empenhado na comunidade em programas de prevenção e tratamento.
Como sublinha Danilo Ballotta, estas políticas nos EUA surgem na sequência das estruturas criadas para a venda medicinal de "cannabis", que é legal em cerca de 30 estados do país. E qual será a influência que estas medidas poderão exercer a uma escala global? E qual será a resposta dos estados – e não são poucos – que têm orientações totalmente opostas?
A resposta poderá ser conhecida em 2016, na UNGASS, a assembleia que a ONU irá dedicar às políticas de drogas. E se os defensores da legalização conseguirem reunir as assinaturas suficientes para forçarem a realização de referendos na Califórnia, no Oregon, no Arizona ou no Alaska, no final deste ano, os seus resultados também poderão apontar o caminho.