A Beatlemania vista daqui

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O primeiro disco português dos Beatles, She Loves You, saíra a 22 de Novembro de 1963. No dia seguinte, o Século Ilustrado dava conta da loucura que varria Inglaterra

Faz precisamente hoje 50 anos que os Beatles aterraram pela primeira vez nos Estados Unidos. Tinham três mil fãs a gritarem até à rouquidão, raparigas a chorarem porque aqueles quatro rapazes parecem uns de nós, mas depois começam a cantar e “são a melhor coisa que já ouvi na vida”. Dois dias depois de os quatro desembarcarem no aeroporto JFK, em Nova Iorque, os Estados Unidos paravam. Retrospectivamente, vemos o momento como o início de uma nova era na cultura popular. 

A 9 de Fevereiro de 1964, 20h em Nova Iorque, os Beatles surgem em directo na televisão americana, no mais popular programa de entretenimento da época, o Ed Sullivan Show. As imagens ficaram inscritas na memória colectiva como umas das mais icónicas do século XX. Eram a preto-e-branco, mas os quatro músicos, John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr, pareciam irradiar cor, pareciam faiscar enquanto se ouviam All my loving, Till there was you e She loves you(yeah!), as primeiras, e I saw her standing there e I want to hold your hand, tocadas no segundo set.

Setenta e três milhões dos 191 milhões de americanos estavam frente à televisão. Os Beatles já eram um fenómeno geracional em Inglaterra. Naquele momento, oficializou-se a Beatlemania como fenómeno global. 

Em Coimbra, Luís Pinheiro de Almeida, 15 anos, estava prestes a percebê-lo. Já conhecia os Dave Clark Five, os Searchers ou Gerry & The Pacemakers. Quando o EPShe Loves You surgiu nas montras das discotecas, ele e os amigos, que tinham por hábito levar o gira-discos portátil para debaixo de umas árvores e aumentar o volume como recomendado, não tardaram a adquirir a novidade. O primeiro impacto não foi o melhor. “O She loves you era uma barulheira, o Twist and shout, então, era de dar um tiro na cabeça.” Salvava-se Do you want to know a secret — ideal para “dançar com as raparigas nos bailes de garagem”. A primeira impressão não perduraria. Luís Pinheiro de Almeida, jornalista, é provavelmente o maior especialista português no tema Beatles, sendo co-autor com Teresa Lage de Beatles em Portugal. Mantém o blogue Ié-Ié (guedelhudos.blogspot.com), verdadeiro arquivo de onde foram retiradas as imagens que ilustram este artigo e várias citações da imprensa portuguesa da época.

Pela mesma altura, Carlos Mendes iniciava em Lisboa, aos 16 anos, o caminho que o tornaria vocalista e guitarrista dos Sheiks, dando início a uma carreira que completa agora 50 anos (irá começar a celebrar a data hoje e amanhã com concertos no São Luiz, em Lisboa, que levará depois ao resto do país). Não teve dúvidas. Cliff Richard e os Shadows, de grande popularidade em Portugal, não lhe suscitavam o mínimo interesse. “Achava aquilo tudo muito plástico, muito perfeitinho e não me interessava a perfeição.” Até que apareceu o single She loves you, trazido por um tio que trabalhava na TAP. Depois de o ouvir, correu até à Alameda, onde o seu grupo se juntava “em muros ou em vãos de escada” e deu a boa nova. “Tive uma espécie de visão: ‘Isto é que é, isto é que é verdadeiro e tudo o resto é uma palhaçada.” Teve outra visão: “Tenho de fazer um grupo.” Os Sheiks, os Beatles portugueses, anunciavam-se.

Enquanto isso, um miúdo de dez anos tornara-se Beatle sem sequer os ter ouvido. David Ferreira, um dos históricos editores discográficos portugueses, conhecedor profundo da história da música popular urbana, como podemos comprovar no programa A Cantar, da Antena 1, ou frequentando o curso Histórias das Músicas Ligeiras que lecciona até 15 de Abril no Centro Nacional de Cultura, em Lisboa, recorda-se bem do momento. Num jantar, perante João Belchior Viegas, empresário de Amália Rodrigues, elogiou os méritos dos franceses Les Chats Sauvages e de Richard Anthony. Belchior Viegas disse-lhe que estava desactualizado. Falou-lhe de uns Beatles que levavam “as raparigas a gritarem quando os viam” e que “tinham o cabelo comprido”. David Ferreira levantou-se da mesa, foi até à casa de banho, puxou o cabelo para a testa e voltou à sala. “Agora sou um Beatle.”

No ano seguinte, já no Liceu Camões, o director perguntou-lhe o que queria ser quando crescesse. “Cantor de ritmos modernos”, respondeu. Discretamente, há cinco décadas, a Beatlemania começava a chegar.

Outra história

Nos Estados Unidos, celebram-se os 50 anos da primeira actuação no Ed Sullivan Show com um espectáculo de marca Grammys que será emitido pela CBS no próximo domingo. E com o reencontro da sua relação com os Beatles: The Beatles: The US Albums (Capitol; distri. Universal Music) é uma caixa que compila os 13 álbuns “americanos” da banda, em reproduções ao pormenor, em formato CD, dos vinis originais. Nela, uma história diferente. 

Com as mãos livres para reorganizar livremente o catálogo da banda, a Capitol, perante o imenso sucesso da banda, entregou-se àquilo que podemos designar, em termos técnicos, como um “regabofe”. Sucederam-se os álbuns sem ordem cronológica aparente e editados numa lógica toscamente mercantilista. O primeiro álbum com edição unificada nos mercados inglês e americano (e, já agora, português), foi Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band. Antes dele, amputavam-se Hard Day’s Night ou Help de algumas canções, substituídas por versões orquestrais, inventavam-se compilações anunciadas como álbuns oficiais, como The Early Beatles, e criava-se um The Beatles Story que é uma espécie de história oral da banda. Mas foi com aqueles álbuns que os americanos construíram a sua relação afectiva com a banda — e é cruel dizer-lhes que toda a sua juventude com os Beatles foi um erro. Até porque da ânsia da equipa da Capitol resultavam coisas como The Beatles Second Album, o álbum mais classicamente rock’n’roll dos Beatles — ou quatro ingleses a mostrarem aos americanos a sua música, numa tendência prolongada por toda a British Invasion que se seguiu. E da tensão entre os Beatles, irritados com a estilhaçar dos seus álbuns, e a editora nasciam maravilhas como a capa censurada de Yesterday & Today (1966), deliciosa acção de guerrilha pop: pedida uma capa para o disco, os Beatles enviam para os Estados Unidos uma foto em que surgem vestindo batas de talhante. Ao colo, aos ombros, por todo o lado, sangue, pedaços de carne e de bonecas adornam o sorriso absurdo e gozão de John, Paul, George e Ringo — arte pop e humor absurdo em combinação perfeita.

E em Portugal? Em Portugal, esqueçam-se os álbuns. A relação estabelecia-se através de EPs, formato que compilava habitualmente quatro canções. “Não havia mercado para o álbum e o poder de compra era baixíssimo”, explica Luís Pinheiro de Almeida — She Loves You, a primeira edição portuguesa dos Beatles, vendeu cerca de 7.500 cópias. A Beatlemania não era aqui, não podia ser, o furacão que varreu a Europa Ocidental e os Estados Unidos. “Portugal não tem nada a ver com o que é agora”, aponta Carlos Mendes. “Era um país cinzento e maledicente. Chamavam-nos maricas por termos os cabelos compridos e as calças apertadas. Lembro-me do Beethoven [João Vidal Abreu], teclista dos Jets, que na rua tinha de pôr o cabelo comprido dentro da camisa para não levar uma carga de porrada.” 

Em Portugal, aquela que terá sido a primeira notícia publicada sobre os Beatles surgiu a 5 de Novembro de 1963 no Diário Popular. Texto curto a dar conta do “enorme êxito” de que o “agrupamento artístico” estava a desfrutar em Londres: “Os seus números de canto são apreciadíssimos, a ponto de, todas as noites, os repetirem cinco e seis vezes cada um.” Semanas depois, surgia nas lojas a primeira edição portuguesa, o EP She Loves You. Capa vermelha, o nome Beatles a ocupar a metade inferior e, por baixo, os rostos recortados dos Fab Four. No Diário Popular, Paulo Medeiros escrevia a 28 de Novembro uma curta crítica ao disco. “Quatro cançonetas de créditos firmados, She loves you, Do you want to know a secret, I’ll get you e Twist and shout, não só pelos quesitos vocais que o distinguem mas também pela juventude que irradiam.”

A partir do momento em que a Beatlemania é uma realidade e se sucedem os relatos do efeito que a sua música provocava, a atitude da imprensa viria a alterar-se.

O Primeiro de Janeiro dava conta a 15 de Fevereiro de 1964 da primeira viagem dos Beatles pelos Estados Unidos. Título: “A epidemia dos Beatles alastra nos Estados Unidos”. Descrição: “Os quatro rockers que já conseguiram fazer perder aos adolescentes do seu país toda a noção de dignidade caracterizadamente britânica”, com “cabeleira nitidamente aparentada à extremidade das vassouras-mecânicas” — em Londres, horrorizemo-nos, “as raparigas, mesmo de boa família, perdem a cabeça quando os ouvem”. Não, não vinha aí nada de bom para o orgulhosamente só país do respeitinho. Era preciso denunciá-los. Recorrer ao humor: “Quatro fabianos espertos lembraram-se de deixar crescer o cabelo. De resto, a moda já não é nova porque os homens das cavernas já a seguiam”, ridicularizava desde Santa Comba Dão, a 6 de Dezembro de 1964, Pedro de Sagunto, cronista do jornal regional A Defesa da Beira. Não parava aí: “Esses quatro jovens possuem já grande fortuna. Mercê dos seus berros e contorções, conseguiram em pouco tempo o que, normalmente, milhões de homens não alcançam durante uma vida inteira de trabalho aturado!” Segundo Sagunto, porém, o olvido era aquilo a que estavam condenados aqueles “zumbidores como os besouros cujo nome usam”, aqueles “no fundo espertos e oportunistas” que “rirão talvez dos seus admiradores, arrastados pelo ritmo diabólico das suas vozes e instrumentos”. 

Entre a tentativa de análise sociológica do fenómeno (“Beatles: gente que faz pensar”, lia-se na capa da revista Flama de 28 de Agosto de 1964; título da peça no interior: “Fenómeno de uma juventude conturbada”), e o combate estético-ideológico em campo aberto (“ganharam dinheiro e fama sem nenhuma preparação pessoal e sem ter contribuído em nada para o aperfeiçoamento da arte”, escrevia na mesma Flama, no ano seguinte, Judith Lupi Freire), existia o outro lado. Os Beatles como poderoso agregador de uma juventude que começava a ganhar consciência de si mesma e da sua situação numa ditadura fechada, castradora. A primeira reacção fora epidérmica, instantânea, ao som e à atitude. Depois, tudo se complexificou. “Foi uma bola de neve”, diz Luís Pinheiro de Almeida. “Primeiro, [ouvir os Beatles] era a melhor maneira de sacar as miúdas. Depois, chegou a rebeldia. Eram os nossos porta-vozes.” Quando integrou a Associação de Estudantes da Faculdade de Direito de Lisboa, recorda, “eram um bom instrumento para chegar a juventudes menos politizadas e, como favoreciam as ideias de contestação, para levar a mensagem de oposição à guerra colonial”. 

Eram, igualmente, um fenómeno incontornável. Tanto se ouviam os Beatles em programas mais sintonizados com o sabor dos tempos, como os históricos 23ª Horaou Em Órbita, como nas matinés do Clube das Donas de Casa apresentado por Henrique Mendes. “E agora, para mal dos meus pecados, os Beatles”: David Ferreira recorda-se nitidamente daquelas palavras, sinal de que estava a chegar o momento que o fazia aguentar o programa durante duas horas.

Roendo a ditadura

Para Luís Pinheiro de Almeida, a Beatlemania nunca foi uma realidade por cá. Como poderia, de resto? “Não foi um fenómeno global. Era limitado à juventude estudante, que ainda assim tinha poder de compra. Só ela tinha acesso à música e à informação que vinha de fora.” A influência fazia sentir-se de outra forma. No cultura anglo-saxónica que começou a ganhar espaço à francesa. Na juventude que começou a calçar botas à Beatle e vestir à Beatle, principalemente “as bandas ié ié”, aponta Luís Pinheiro de Almeida. Carlos Mendes seria um bom exemplo: passou aqueles anos obcecado com John Lennon, vestindo como ele, andando como ele, cantando como ele. “O mundo era mais lento”, como nos diz David Ferreira, e Portugal um país fechado. Mas a amplificação da revolução aberta pelos Beatles chegou.

David Ferreira defende que “há dois carunchos que roem a ditadura, um é a música pop, o outro o turismo. E são incontroláveis. São fenómenos de culturas alternativas que podem tornar-se uma contestação que não pode ser circunscrita”. 

Quando em 1965 o empresário Vasco Morgado decide organizar o primeiro Concurso Ié-Ié no Teatro Monumental, em Lisboa, a que concorreriam bandas de todos os cantos de Portugal e das antigas colónias, fá-lo associando-se a Cecília Supico Pinto, a criadora do Movimento Nacional Feminino, organização de apoio aos combatentes na Guerra Colonial apoiada pelo Estado Novo. “A juventude pode ser alegre sem ser irreverente”, lia-se num cartaz no teatro. Não seria exactamente assim. “Ali havia umas cenas de histeria, entre aspas, como havia com os Beatles”, recorda Luís Pinheiro de Almeida. Carlos Mendes, então já nos Sheiks, fala-nos de concertos em que não ouvia nada do que tocava em palco, tal como relatado mil vezes em relação aos Beatles. Fala-nos de outra coisa. “As raparigas percebiam também, por aquilo que vinha de filmes como o Hard Day’s Night, que podia haver uma certa liberdade, que a vida não tinha de ser estar em casa a costurar à espera de um marido. Tenho muita admiração pelas raparigas do meu tempo. Tiveram uma coragem extraordinária para se imporem. Nós éramos apenas insultados pelo cabelo. Com elas, um beijo mais demorado já as transformava em ‘gajas malucas’, uma certa forma de vestir e eram prostitutas.”

David Ferreira resume: “O concurso do ié ié começa como prova de simpatia da juventude pela juventude que está na guerra a combater por Portugal. Mas a juventude começa a portar-se mal. Queriam cavalgar aquele cavalo porque os miúdos gostavam mas, de repente, o cavalo dá pinotes.” Os Beatles não são citados nestas declarações, mas estão nelas.

Alguém disse um dia que os Beatles foram causa e efeito do seu tempo. Foram respondendo ao que espoletavam no mundo e foram também alterando esse mesmo mundo. Sem programa definido. O efeito fez-se sentir mundo fora. Portugal, naturalmente, não escapou.

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