Ciência e equívocos

Não é bom que se discuta – e decida – com base em equívocos.

O primeiro equívoco tem a ver com a forma como se olha o que se fez nos últimos 10-15 anos em Portugal em termos de política científica. Há como que uma miopia de direita e uma miopia de esquerda. À esquerda, há quem acredite que foi o melhor dos mundos. Financiamento recorde, crescimento exponencial dos principais indicadores, aproximação a galope dos países mais desenvolvidos. À direita, há quem fale de “obscurantismo” provocado por uma política estatal insustentável a longo prazo, apontando como solução a “universidade”. Não vêem o óbvio. Aos “iluminados” da nossa extrema-direita, fechados no seu Portugal dos pequenitos, falta-lhes mundo. Em país algum ficou jamais uma política científica digna desse nome a cargo da “universidade” – quem falaria e decidiria em seu nome? O conselho de reitores? Ou seriam assembleias de alunos, docentes e funcionários? O ridículo mata. Desde há décadas que qualquer país desenvolvido – Estados Unidos à cabeça – tem uma ou mais agências governamentais responsáveis pelas respectivas políticas de ciência. Não saber isto é não saber nada de nada. Já os defensores da primavera rosa parecem ter a vista obnubilada pelo brilho dos powerpoints. Parecem não querer ver que uma bolsa não é um emprego. E que para criar empregos é necessário ir contra interesses instalados, já para não falar nos modos de fazer e de pensar clientelares tão profundamente enraizados entre nós. Este foi, provavelmente, o erro mais grave dos últimos 10-15 anos. Em vez de se começar a abrir as universidades ao mérito e ao esforço, entrelaçando ensino e investigação, e de se criar incentivos às empresas para contratarem pessoal qualificado, optou-se por criar um sistema de laboratórios associados paralelo às universidades, um sistema tão moderno quanto efémero. Perdeu-se com isto uma oportunidade de ouro para se efectivamente modernizarem as universidades. Pior: criou-se uma situação em que ao primeiro abalo todo o sistema soçobraria, deitando a perder o investimento de centenas de milhões de euros entretanto realizado. É esta a situação em que agora nos encontramos. Uma reforma por fazer, investimento em risco de se perder e pouca clarividência sobre as razões das nossas dores.

O segundo equívoco tem a ver com a política científica do actual Governo. Quem corta nas bolsas fá-lo com o argumento de que teríamos entrado numa segunda fase do processo de desenvolvimento científico: à fase da expansão, seguir-se-ia agora a fase da consolidação. Esta tese da poda enferma de um pequeno problema. Ignora o país que (ainda) somos. Temos décadas de atraso, não um excesso de qualificações. Precisamos de mais alunos a completar o ensino secundário, não menos. Precisamos de mais alunos a frequentar o ensino superior, não menos. Precisamos de mais bolsas, não menos. Precisamos de mais emprego científico nas universidades e empresas, não menos. Precisamos de procedimentos de avaliação mais transparentes, não menos. E de tudo isto precisamos muito mais, não apenas de mais qualquer coisa. Desengane-se, pois, quem no Governo julga que tem o trabalho quase feito, e que só basta cortar nas bolsas para alcançar a excelência. A verdade é outra, bem diferente. Temos ainda décadas de trabalho pela frente, se quisermos vir a ser uma sociedade mais justa, mais desenvolvida, mais competitiva e mais democrática. Uma sociedade em que o acesso ao conhecimento é de todos e não de alguns, em que as universidades servem o país e não apenas a quem lá trabalha, em que as empresas apostam no conhecimento e na inovação e não nos salários baixos. Os portugueses, sobretudo pelo que estão a passar desde 2011, não merecem menos do que isto.

É bom que os telejornais abram com notícias sobre o que se faz nas universidades e nos centros de investigação. Mas não é bom que isto aconteça pelas piores razões. E, sobretudo, não é bom que se discuta – e decida – com base em equívocos.

Investigador, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa

 
 
 
 
 
 
 
 

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