Ficou vazio o lugar de inventor do documentário brasileiro
O homicídio de Eduardo Coutinho põe fim a uma trajectória irrepetível no cinema do Brasil. O homem que dominava a arte da entrevista e com ela construía um jogo sedutor entre realidade e ficção não voltará a filmar.
Na sessão da FLIP, aquele a quem muitos definem como um dos maiores documentaristas do mundo falou dos projectos que tinha na cabeça, das condições em que fez o mais célebre dos seus filmes - Cabra Marcado para Morrer – e de um passado sem nostalgias nem misticismos: “A minha vida foi e pronto. (…) Enfim, o mundo tem mistérios, só isso.”
Eduardo Coutinho, 80 anos, foi assassinado no domingo, na sua casa na Lagoa, zona sul do Rio de Janeiro. Foi morto à facada, muito provavelmente pelo seu filho, Daniel, que, segundo fontes próximas citadas pela imprensa brasileira, sofre de esquizofrenia. Antes de tentar suicidar-se, o principal suspeito atacou também a mulher do cineasta, Maria das Dores, 62 anos, que ficou gravemente ferida. Os dois estão hospitalizados, mas Daniel Coutinho, de 42, encontra-se já fora de perigo e à guarda das autoridades, sendo a Divisão de Homicídios da Polícia Civil do Rio responsável pela investigação.
A surpresa e a violência do ataque deixaram o Brasil em choque, em especial o universo cinematográfico, que tinha neste paulista nascido em 1933 uma das suas principais referências, dentro e fora do documentário. É que Coutinho começou pela ficção, dedicou-se depois à televisão e ao jornalismo (esteve dez anos ligado ao programa Globo Repórter, da TV Globo) e só depois da estreia de Cabra… consagrou a carreira ao documentário, embora não em exclusivo.
“Era um homem muito inteligente, muito sereno, fácil de lidar”, disse ao jornal O Globo o também cineasta Cacá Diegues, 73 anos, um dos nomes do Cinema Novo, com quem Coutinho entrou em contacto logo na década de 1950. “Ele inventou o documentário no Brasil”, acrescentou, e a sua morte é, por isso, “uma perda muito grande”: “Era o maior documentarista brasileiro de todos os tempos.” O realizador de Deus É Brasileiro tinha apenas 26 anos quando o conheceu e está longe de ser o único a catalogar o amigo como um “mestre”.
O realizador Jorge Furtado fala em “tragédia para o cinema brasileiro” e junta-se a Diegues para dizer que “[Eduardo Coutinho] é um dos maiores documentaristas do mundo, um grande pensador do cinema”. Para o homem que esteve por trás das câmaras em filmes como O Homem que Copiava, uma das marcas mais profundas da cinematografia de Coutinho é a renovação constante, a imensa capacidade de surpreender a cada novo título. “Muita gente tentava imitar o Coutinho. O trabalho dele parecia simples, mas os filmes eram muito sofisticados”, disse Furtado, também citado pelo Globo.
Fernando Meirelles, o realizador de Cidade de Deus, O Fiel Jardineiro e Ensaio sobre a Cegueira, também vê no cineasta de Cabra... um mestre: “Não há ninguém no Brasil que possa ocupar o lugar de Coutinho. Fica vazio.”
A arte da entrevista
Fosse na ficção, na informação ou no documentário, Eduardo Coutinho sempre privilegiou histórias envolventes, contadas na primeira pessoa, centradas em temas sociais de actualidade, muitos envolvendo personagens marginalizadas. Isto não quer dizer, no entanto, que visse o cinema como instrumento político de intervenção ou manipulação da opinião pública: “O filme militante é uma tragédia porque já está escrito antes. Convencer o já convencido é terrível, fazer um filme para convencer alguém é terrível”, disse ao Jornal Folha de S. Paulo, em Outubro do ano passado.
O título mais importante da sua filmografia – Cabra Marcado para Morrer – é um exemplo do que sempre quis do cinema. Começou a ser rodado em 1964, estreando apenas 20 anos depois. O interregno na realização desta obra que conta a história do líder camponês João Pedro Teixeira e procura reconstituir o episódio do seu assassinato em 1962 deveu-se ao golpe militar que viria a instaurar uma ditadura que determinou que os registos feitos pelo cineasta até então eram “material subversivo”. Tinham decorrido apenas duas semanas de filmagens – o elenco era formado pelos trabalhadores do Engenho Cananeia, no interior de Pernambuco, ligados a Teixeira – e toda a equipa foi acusada de “comunismo”. O projecto foi retomado em 1981, alargando-se às trajectórias de outros dirigentes das Ligas Camponesas, que lutavam pelos direitos dos trabalhadores rurais, e misturando realidade e ficção.
"O que é mais interessante na obra de Eduardo Coutinho é a transposição da prática que ele tem do jornalismo para o cinema", explica ao PÚBLICO Américo Santos, o organizador do Festival de Cinema Luso-Brasileiro de Santa Maria da Feira, que em 2003 o homenageou. "Ele parte da entrevista para criar um cinema documental com uma linguagem muito própria, que nada tem a ver com a reportagem. E parte de um truque que ele domina – o que lhe permite extrair o real da ficção e criar ficções a partir da realidade. O prazer do seu cinema acontece quando entramos neste jogo de ambiguidades."
Coutinho costumava dizer que lhe interessava mais contar a história de pessoas anónimas, de as entrevistar, porque essas, ao contrário dos filósofos e grandes estadistas, tinham muito menos a perder. “Cinema é isto: se você conta mal, não adianta ter uma boa história. Saber contar é essencial”, repetiu na FLIP.
É num dos seus filmes mais recentes, Jogo de Cena (2007), que o realizador vai mais longe do que nunca para questionar os limites do documentário nesta fronteira entre o que aconteceu e o que podia ter acontecido, lembra o diário Folha de S. Paulo, juntando actrizes a mulheres anónimas numa série de relatos autobiográficos em que não se sabe quem está, ou não, a representar um papel.
Foi também nesse ano que Eduardo Coutinho recebeu o prémio mais importante do cinema brasileiro, o Kikito de Cristal, pelo conjunto da sua obra com mais de 20 títulos, em que se destaca, além do óbvio Cabra Marcado para Morrer (1985), O Fio da Memória (1991), Santo Forte (1999), Babilônia 2000 (2000), Edifício Master (2002) e Peões (2004).
“Coutinho nunca foi um praticante ingénuo do documentário, desses que buscam interesse para o filme no ‘assunto’ de que tratam. Era a partir de seu trabalho que o assunto acontecia, tornava-se interessante. Daí a vastidão e a radicalidade de suas experiências”, escrevia esta segunda-feira o crítico de cinema da Folha, Inácio Araujo. O seu cinema – a sua arte – passava precisamente pela entrevista, veículo para dar a conhecer pessoas, revelando-lhes “a complexidade, a beleza, o mistério”.
Era o próprio Coutinho que dizia partir para os filmes, e para as conversas com as potenciais personagens, sem guião e sem medo de fazer perguntas básicas, tantas vezes as mais importantes: “Bom é o filme que faz perguntas, o que tem respostas você joga no lixo.”
“Aonde poderia ainda chegar?”, pergunta-se o crítico da Folha, antes de responder: “Muito longe. Coutinho era um mestre absoluto e um fumante inveterado com fôlego sem fim.”
Com a ironia que lhe era habitual, a mesma que usava para assinar a página de astrologia da revista Piauí com o pseudónimo Chantecler – em que fazia desaparecer signos e recomendava que se lessem obras de Michel Foucault “pulando as páginas pares” –, Eduardo Coutinho referia-se às suas crenças religiosas (“queria acreditar em muitas vidas, em Deus e etc.") e ao seu desejo de eternidade: "Torço para continuar imortal, mas fumando três maços por dia.”