Esta Virgem italiana é um best-seller
Trazer uma Virgem da oficina de Verrocchio e expô-la ao lado da de Cesare da Sesto dá ao visitante do Museu de Arte Antiga a oportunidade de se confrontar com duas obras que têm como elo comum Leonardo da Vinci.
A primeira é belíssima e tem um ar sereno, talvez um pouco ausente, a segunda, do também italiano Cesare da Sesto, tem agora cores exuberantes que tornam ainda mais evidentes as suas formas generosas e é claramente executada por alguém que teve Leonardo por referência.
“Há aqui claramente um primado do desenho, do contorno, o que não é surpreendente”, diz Joaquim Caetano, conservador do museu, apontando para a obra que saiu do atelier de Verrocchio e explicando que toda a pintura italiana do século XV se baseia nesta virtude de dar uma ideia de tridimensionalidade, a que se associa aqui a “extrema idealização da beleza da Virgem”, comum na Florença desta época e que atinge o seu ponto mais alto com Botticelli: “A esta imagem de grande humildade, serena, junta-se um referente matricial de beleza que se identifica com a própria ideia do bem.” Uma ligação que ajuda à transmissão dos ideais religiosos e que é ainda mais útil num período de prosperidade para a cidade, em que surgem as primeiras dissensões na Igreja no que respeita ao papel que a arte nela deve ter. “Muitos se questionavam se esta arte que reflectia o luxo e um certo culto da antiguidade não estaria a fazer com que as pessoas fossem mais à igreja para ver a pintura do que para rezar à Virgem.”
Não é certo que a Virgem agora exposta no Museu de Arte Antiga – um empréstimo do Museu Städel de Frankfurt em troca do S. Jerónimo de Albrecht Dürer do MNAA que se deslocou à Alemanha para uma exposição que ainda decorre – seja de Adrea del Verrocchio (c. 1435-1488). O mais rigoroso, garante José Alberto Seabra Carvalho, conservador e director adjunto do museu, é atribuí-la ao pintor, escultor e ourives e à sua oficina, uma das mais bem sucedidas da Florença da segunda metade do século XV. A Virgem com o Menino, do Städel, terá sido executada entre 1470-80, como quase toda a pintura de Verrocchio, que, apesar de ser já muito activo logo no início da década de 1470, só recebeu o estatuto de pintor em 1474.
O mestre e o discípulo
Sabe-se muito pouco da relação entre Verrocchio e o seu discípulo mais célebre, Leonardo da Vinci, que terá trabalhado no seu atelier, “uma verdadeira fábrica”, entre 1469 e 1478, primeiro como aprendiz, à semelhança de artistas como Pietro Perugino ou Botticelli, e depois como colaborador do mestre. “Verrocchio era um professor reconhecido e a sua oficina era muito apetecível porque ele era talentoso, recebia as melhores encomendas e, por isso, tinha muito trabalho. É natural que Leonardo o escolhesse.”
Há várias obras em que os dois terão colaborado, a mais famosa das quais – um Baptismo de Cristo, hoje nos Uffizi, de Florença – deu origem a uma pequena história que o pintor e arquitecto Giorgio Vasari (1511-1574), o primeiro biógrafo dos artistas italianos da Renascença, conta no seu Vidas, título fundador da História de Arte: Leonardo terá pintado (pelo menos) um dos dois anjos ajoelhados e o mestre, vendo que o trabalho do aluno era claramente superior ao seu, terá dito que não voltaria a pegar num pincel.
“Podemos dizer que as melhores obras de Verrocchio são esculturas, mas ele e a sua oficina trabalham também em pintura e ourivesaria – e tudo ao mesmo tempo”, continua o conservador do MNAA, sublinhando que em todos os meios o pintor evidencia uma “enorme mestria no desenho”.
Na sua oficina, aliás, circulavam muitos dos modelos que criara com “grande inventividade”, alguns picotados, provavelmente para serem transpostos com mais facilidade para outros suportes por alunos e colaboradores: “Verrocchio tem consciência de que, ao desenhar, está a criar tipos com uma grande marca autoral. Nesta pintura, por exemplo, vê-se muito bem na Virgem que há um modelo que se repete, que se nota noutras versões que faz do mesmo tema – a boca pequena, delicadíssima, a fronte relativamente alta, o pescoço alongado e as mãos que, por regra, se exibem em articulações sofisticadas.”
Ainda que esta “marca autoral” surja na pintura, é na escultura que ela é mais evidente. Há, aliás, nesta Virgem com o Menino “uma clara intenção escultórica, a de expor os volumes”, explica Joaquim Caetano, mostrando Jesus no parapeito da janela como quem coloca uma peça sobre um plinto. É com os recursos do “designer exímio” – a expressão é de Seabra Carvalho – e do escultor que Verrochio trabalha esta pintura: “O tratamento das pregas no manto da Virgem, por exemplo, não se faz através de contrastes de luz e sombra, como faria com mais naturalidade um pintor. Aqui a luz não tem uma direcção clara, tudo é um pouco seco, duro. A janela também não é a do Renascimento, não está muito bem perspectivada.” Isto não impediu, sublinha, que esta temática, que representou também em mármore e terracota, fosse um best-seller da sua oficina, “extremamente eficaz do ponto de vista da arte e da devoção”.
Um “Leonardo” para o rei
Trazer esta pintura da oficina de Verrocchio a Portugal e expô-la ao lado da de Cesare da Sesto (1477-1523), uma obra que pertence à colecção do Palácio Nacional da Ajuda mas que está no MNAA desde 1920, dá ao visitante a oportunidade de se confrontar com duas obras que têm como elo comum Leonardo. De um lado a elegante Virgem do seu professor – hoje um pouco “ofuscada” por uma camada de verniz esverdeado, segundo Susana Campos e Teresa Serra e Moura, conservadoras-restauradoras do MNAA que se encarregaram da operação de limpeza do Cesare da Sesto –, do outro a Virgem com o Menino e S. João Baptista Menino (c. 1510) do seu discípulo, que nela faz, segundo o director adjunto do museu, uma citação directa da célebre Virgem dos Rochedos (obra de Leonardo com duas versões, uma no Louvre, em Paris, e outra na National Gallery de Londres). “Esta filiação leonardiana que o Cesare da Sesto assume vê-se nas duas figuras infantis, que são muito parecidas com a dos Rochedos. E são também muito parecidas entre si, distinguindo-se apenas pelo facto de Jesus estar a levantar a mão numa bênção.”
O historiador Hugo Xavier, autor do livro Galeria de Pintura no Real Paço da Ajuda (Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2013), estudou ao pormenor a criação da colecção régia de pintura, uma iniciativa que marcou os primeiros anos de D. Luís como monarca (subiu ao trono em 1861), projecto do qual viria a desinteressar-se mais tarde. É neste contexto, e graças à acção do pintor e primeiro director da galeria, Marciano da Silva, que a Virgem de Cesare da Sesto chega a Portugal, ainda com a atribuição errada a Leonardo da Vinci (embora houvesse já especialistas a contestá-la), assim como quatro outras pinturas de que o Diário de Notícias de 30 de Junho de 1867 dá conta: “Entre os quadros que trouxe o sr. Marciano figuram em primeira linha: um admirável Leonardo da Vinci, um Ticiano, um Paris Bordone, um Moroni, um Bellini, todos artistas da idade augusta da pintura. Estes quadros fizeram parte da célebre galeria de Brescia, pertencente ao conde Lechi.”
Deste conjunto saído da importante colecção Lechi, explica ao PÚBLICO Hugo Xavier, apenas a atribuição a Moroni – um retrato que se encontra ainda na Ajuda – se confirma (Calouste Gulbenkian comprou também um Moroni do acervo do conde, em exposição no museu de Lisboa). A autoria da Virgem foi corrigida para Cesare da Sesto e as restantes obras continuam a levantar dúvidas, sendo o Ticiano considerado, “muito provavelmente”, uma cópia da época, hoje nas reservas de Arte Antiga.
Por estar atribuído a Leonardo, Virgem com o Menino e S. João Baptista Menino foi objecto de alguma disputa entre Marciano da Silva, que comprava para D. Luís, e algum representante de outro coleccionador estrangeiro? “Não há qualquer indício disso”, explica Xavier, acrescentando que quando o enviado português foi ver a colecção Lechi, depois de ter passado por Bruxelas e Paris, ela estava já “muito desfalcada”. Só Gustav Waagen, “homólogo” de Marciano da Silva, tinha adquirido em nome do rei da Prússia 11 Veroneses, cinco Ticianos, dois Morettos e um Tintoretto, escreve Xavier.
“Muitas das obras desta colecção dispersas pela Europa terão sido destruídas nos bombardeamentos da Segunda Guerra Mundial”, mas outras sobreviveram, como o Retrato de Jovem (1540-45), de Moretto, e o Retrato de Giovanni Agostino della Torre e do Filho, Niccolò (1513-16), que fazem parte da colecção da National Gallery de Londres.
“O que sabemos deste Cesare da Sesto que veio para Portugal é que devia ser um dos preferidos do rei, porque esteve no quarto de cama de D. Luís”, diz o historiador. Hoje, depois da limpeza, sem o verniz escurecido que a cobria, a pintura exibe as suas cores sedutoras, mas sem qualquer vestígio da técnica do sfumato em que Leonardo era exímio, acrescenta o conservador José Alberto Seabra Carvalho: “O modelo que ele usa é Leonardo, mas sem as mesmas ferramentas de transmissão.”