Estamos então com Pete Kember, ou Sonic Boom, ele dos Spacemen 3 e dos Spectrum, autor de algum do psicadelismo mais intenso e minimal, rock’n’roll e blues em liquefação, que já ouvimos. Neste preciso momento, mostra-nos uma aplicação do seu telemóvel que lê texto em tom autoritário de executivo sénior — e aponta o efeito cómico daquela voz gerada electronicamente quando aplicada a um e-mail recheado de palavreado técnico, acerca do concerto que o levará na próxima quinta-feira ao Teatro Maria Matos, em Lisboa. Entrecorta a audição com pequenas gargalhadas rilhadas entre os dentes.
Kember ri-se muito assim, qual miúdo travesso. Não ri quando fala da matéria que o intriga e que lhe ocupa os dias desde a adolescência. Ri menos quando fala de música, ou melhor de som — há tanto em nosso redor, e ele quer abraçá-lo todo. Não é estranho portanto que nomeie como a sua maior influência, antes dos Velvet Underground, de Bo Diddley, dos Suicide ou dos Kraftwerk, “o ruído de janelas, da chuva, dos carros e dos comboios, dos aviões a jacto” — não por acaso, escolheu o nome de guerra Sonic Boom em referência aos voos supersónicos que ouvia na sua juventude na pequena cidade inglesa de Rugby.
Não é estranho tudo aquilo porque é consentâneo com o percurso de alguém que deu ao rock uma qualidade ritual de imersão no som (e de sublimação desse som pelos sentidos de quem decidisse levar a sério o mote da banda, “Taking drugs to make music to take drugs to”, como inscrito em título de bootleg dos Spacemen 3). Depois, foi procurando nas possibilidades abertas pela electrónica (a de ontem e a do futuro) outras formas de exprimir um mesmo desejo: fundir a música que o apaixona com o som que o impressiona e intriga.
Após o fim dos Spacemen 3 e a separação de Jason Pierce (que fundaria, como é público, os Spiritualized), Pete Kember dividiu-se em duas encarnações: os Spectrum, descendentes directos do trabalho com a banda, e os Experimental Audio Research (EAR), exploração de texturas electrónicas em que se transforma em homem-máquina procurando levar-nos até um lugar onde a música “não parece pertencer a este mundo, nem sequer a este universo” — é-lhe cara a ideia de viagem, do mundo extra-terreno. A responsabilidade por esse fascínio tem um nome. Ou melhor dois: Dr Who, a série de ficção científica da BBC estreada em 1963, e a criadora do seu genérico, a pioneira da música electrónica Deila Derbyshire.
Kember não conseguiu tirar da cabeça o que Derbyshire fez com a partitura composta por Ron Grainger. “Tal como acontece nos filmes de Hitchcock, se retirares a música às imagens elas não têm qualquer efeito. É a música que faz o filme.” Com Derbyshire, percebeu que existia a tal música que “não parece pertencer a este mundo, nem sequer a este universo”. E que a maior parte dela tem origem electrónica.
Pete Kember está a balançar os braços longuíssimos numa cozinha no Bairro Alto. Veio para Lisboa há algumas semanas, convidado por Noah Lennox, Panda Bear, para produzir o sucessor de Tomboy, o álbum que o membro dos Animal Collective, lisboeta há dez anos, editou em 2011. Kember já trabalhara em Tomboy, acompanhando posteriormente Panda Bear em concerto. A dupla não se desfez e ele não podia estar mais feliz — mas não é por isso que balança os braços de forma cómica perante o olhar divertido da mulher Sam, de um jornalista e de um fotojornalista: está a gozar consigo próprio, tentando imitar um chimpanzé. Antes de nos encontrarmos com ele, esta galhofa seria a última coisa que esperaríamos de Pete Kember. Há um par de anos, um jornalista da VICE americana disse que era evasivo. “Evasivo?”, cortava Kember. “Sim, és um pouco misterioso.” Soltou-se uma gargalhada: “Isso é porque ninguém escreve sobre mim.”
Não se escreve certamente tanto quanto se foi escrevendo sobre Jason Pierce e os Spiritualized, que se transformaram numa banda de imenso sucesso com o seu gospel eléctrico-psicadélico. Isso é certo. E também é certo que a aura de mistério não o abandonou. Quando se pertenceu a uma banda de culto e, no fim dela, se prosseguiu uma carreira à margem do circuito pop, distante do radar mediático, é normal que assim seja. Quando, além disso, se acumulam anos sem que lhe ouçamos nova música, actividade substituída pela produção, na sombra, de nomes como MGMT, Wooden Shijps, Peaking Lights ou Panda Bear, é mais normal ainda, sobretudo quando se googla o seu nome e a primeira sugestão que lhe surge associada é drugs: o que faz a fama de uma banda e a forma honesta, sem subterfúgios, como sempre falou dos estimulantes químicos e naturais e do seu consumo deles... Lá se foi acendendo um charro durante a entrevista, mas isso parece hoje gesto banal de mais para configurar mitificação de excessos.
Ei-lo então, ao vivo e a cores, na casa que alugou no Bairro Alto. É um anfitrião caloroso, curioso e divertido. Nada misterioso. Um homem de 48 anos que o tempo conservou muito bem — desassombrado perante o seu percurso musical, metódico na explicação das suas opções, eternamente fascinado.
É por isso, e continuamos a voltar ao início, que não podia estar mais feliz. E pouco preocupado em apressar-se na edição de nova música — editou enquanto Spectrum pela última vez em 2009 (o EP War Sucks) e enquanto EAR em 2005 (Worn to a Shadow). “Só quero editar o que sentir que é óptimo.” O concerto é, neste momento, a sua prioridade. “Tentar corresponder àquilo que o público procura sem cair no óbvio. Conseguir que o concerto seja melhor do que esperam. Ali, tudo flui em círculo e faz ricochete de uma forma muito envolvente.”
Como se traduzirá isto no Maria Matos? É certo que não o veremos com uma guitarra nas mãos. Utilizará os sintetizadores necessários para chegar aos sons desejados, utilizará samplers e caixas de ritmos. Cantará. Misturará a a exploração com canções: How does it feel?, Let me down gently ou If I should die, “as mais suaves dos Spacemen 3, que foram pensadas como paisagem sonora”; e também, provavelmente, versões transfiguradas de Kraftwerk, Laurie Anderson ou Suicide.
“Partamo-lo!”
A atitude não mudou desde os primeiros tempos, em meados da década de 1980. Kember é tudo menos um onanista que se compraz em alienar os outros. “O que levou a que nos superássemos [nos Spacemen 3] foi tentar desesperadamente agradar às pessoas sendo incapazes de o fazer segundo as regras. É óbvio que queríamos que o mundo exclamasse ‘é a isto que eu chamo música’. Se não, poderia ter ficado na cama a masturbar-me. Mas isso não dá exactamente o mesmo prazer que interagir com os outros.” Neste momento, o palco é o habitat exclusivo da sua música. Mas a sua acção não se esgota nele. Já dissemos que ele anda incrivelmente feliz?
“É impossível bater o trabalho que faço neste momento, trabalhando com outros músicos”, exclama. “É muito mais fácil e divertido do que trabalhar na minha música.” Nisso está entre o adolescente fascinado com a descoberta musical e o veterano experiente que sabe como contribuir. Vejamos o caso de Panda Bear. Quando ouviu Person Pitch, o magnífico álbum de 2007, não se conteve. A admiração foi tão intensa (ainda para mais com os Spacemen 3 referidos na arte gráfica) que contactou Noah Lennox, oferecendo-se para colaborar no que quer que fosse. Dois anos depois, no festival All Tomorrow’s Parties com curadoria dos Animal Collective, veio o convite para os Spectrum integrarem o cartaz — e um segundo convite, quase en passant: “Não estarias interessado em fazer as misturas do meu novo álbum?”
Kember chegava a Tomboy, chegariam depois os concertos em conjunto, chega agora a produção do novo álbum. “Ele sabe perfeitamente o que quer fazer da música, mas não sabe tudo o que é necessário tecnicamente.” Esse é o trabalho de Kember, que, acto contínuo, utiliza uma analogia feliz para explicar a sua condição de músico hoje, num meio dramaticamente tecnológico. De um lado, “o músico com os seus jeans gastos, que sabe tudo sobre a alma e a emoção da música e sobre como comunicá-la”. Do outro, “o cientista de sobretudo branco e óculos que sabe tudo sobre gravação e sobre som.” Kember passou muito tempo de jeans a confiar no tipo desobretudo branco que gravitava por ali. “Entretanto descobri que o ideal é vestir as mangas do sobretudo e manter os jeans. Foi o que fizeram os Kraftwerk, os melhores a caminharem nesse fio da navalha.”
E é provavelmente o que faz Panda Bear. Kember não esconde o fascínio. “Todas as suas canções têm um elemento que parece irrelevante mas que se descobre determinante. Se eu disser que Comfy in nautica [a primeira canção de Person Pitch] tem automóveis de corrida numa pista, parecerá estranho. Mas estão lá.” Ele sabe: “Era eu que disparava esse som nos concertos.”
O som, sempre o som. Pete Kember fala dos instrumentos inventados pelo futurista italiano Luigi Russolo, autor de A Arte do Ruído, e deles passa entusiasmado paraO Planeta Proibido, filme de ficção científica de 1956 com banda-sonora de Louis e Bebe Barron. “Eles reproduzem o som das válvulas a morrer. Passaram a vida a ouvir coisas a partirem e a gravá-las. Disseram-me um dia que não há forma errada de usar um instrumento, desde que não o quebremos. Não é verdade. Se parti-lo resultar num som incrível que nunca antes foi ouvido, então não tenhamos dúvidas. Partamo-lo!”.
Pete Kember ainda anda à procura. Tem 48 anos, continua rodeado de som e não ouviu tudo o que tem para ouvir. Veste a bata de cientista. Por baixo, os jeanscoçados do rocker intuitivo.
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