Praxes ou bullying perigoso?

Defendo que as praxes devem obedecer a um código de conduta.

Começo por referir que fui estudante de Medicina em Coimbra de 1987-1993, e fui praxado. Um dia por volta da meia-noite quando regressava a casa, acabei por ser apanhado por um trupe de alunos mais velhos. Foi aplicado o respectivo código da praxe (em Coimbra havia um código da praxe com regras claras) e, atendendo às altas horas da noite, impróprias para um caloiro, fui punido com umas tesouradas no cabelo. No dia seguinte, embaraçado pelo estado ridículo em que ficara o meu cabelo, dirigi-me a um barbeiro que havia na Praça da República, a quem chamávamos o “Pepe rápido”; era assim conhecido, devido à rapidez com que cortava o cabelo. Sentei-me e, quando ia dar uma explicação para a minha triste figura, o barbeiro murmurou, num tom complacente: "Não se preocupe, hoje já é o sétimo!..."

A minha experiência de praxe foi globalmente positiva. Em Coimbra havia uma tradição de praxe académica, com regras, que servia para integrar os caloiros, facilitando que os alunos de diferentes cursos se conhecessem, e deste modo fossem criadas novas amizades. Mas confesso que, por aquilo que tenho visto e lido, muitas das praxes atuais pouco ou nada têm a ver com esse espírito.

Os rituais de praxe são realizados habitualmente em grupo, num ambiente de grande excitação e exaltação colectiva. Neste contexto, os mecanismos dos limites sociais estão enfraquecidos, criando-se condições para o aparecimento de violência física ou psicológica, expressas através de humilhações gratuitas. O perigo reside no risco de alguns veteranos apresentarem mentes psiquicamente perturbadas, encontrando na praxe o ambiente propício para expressarem as suas frustrações pessoais e agressividade, frequentemente com contornos de perversão. Assim, a praxe passa a ser bullying. Muitas das praxes a que assistimos podem ser considerados comportamentos de bullying, já que configuram atos intencionais de agressão física ou psicológica que envolvem uma disparidade de poder entre os agressores e as suas vítimas.

Como estas praxes ocorrem em idades mais avançadas, comparativamente, por exemplo, com a adolescência, a violência dos rituais torna-se não apenas mais sofisticada como também mais perigosa. Se juntarmos a este fenómeno o fato dos rituais da praxe serem muitas vezes realizados sob o efeito desinibidor do álcool (e por vezes drogas), a situação pode adquirir contornos de grande gravidade.

Basta, portanto, que haja um individuo perturbado psiquicamente a liderar um grupo de praxe para que os comportamentos possam adquirir contornos de grande risco e violência. Porém, as perturbações mentais não explicam tudo. Num artigo recente (2013) da revista científica International Journal of Adolescent Medicine and Health, os autores concluem que a evidência científica não suporta a ideia de que a maioria das ações cruéis são intrinsecamente patológicas, no sentido de serem motivadas por perturbações mentais. Por esta razão, apenas as regras morais e as ações legais (e não as intervenções psiquiátricas) poderão dissuadir o ser humano desta forma de crueldade.

Defendo, portanto, que as praxes – como grande parte dos comportamentos sociais – devem obedecer a um código de conduta, devidamente regulamentado, no qual deve ficar claro a proibição de rituais de humilhação gratuita, bem como de condutas violentas que possam colocar em perigo a integridade física dos caloiros ou susceptíveis de provocarem qualquer dano psicológico. Além disso, deve ficar explícito que a praxe deve ser voluntária, sendo que o seu objectivo principal é facilitar a integração dos novos alunos. As regras da praxe poderão ser elaboradas entre os alunos e as respetivas universidades, de forma a poderem ser punidos aqueles que desrespeitarem os princípios da mesma.

A praxe deve ser discutida às claras e regulamentada entre as partes, de modo a evitarem-se situações de bullying que são inaceitáveis em sociedade e que devem ser repudiadas por todos nós.

Médico psiquiatra
 
 
 

Sugerir correcção
Comentar