Morreu Pete Seeger, o decano da folk americana
O autor de If I had a hammer, activista que atravessou todas as convulsões do século XX, morreu aos 94 anos em Nova Iorque.
Um dos grandes responsáveis pela transmissão do conhecimento sobre a música de raiz americana aos seus compatriotas, autor de Turn turn turn, If I had a hammer e responsável pela popularização enquanto hino de We shall overcome, Pete Seeger atravessou todas as convulsões do século XX e as do início deste em que vivemos actualmente. Sempre presente. Como nota em obituário o Washington Post, cantou contra o terror de Hitler, nas décadas de 1930 e 40, opôs-se à utilização da energia nuclear, foi incluído na lista negra do McCarthismo na década de 1950, juntou-se, na década seguinte, aos movimentos pelos direitos cívicos liderados por Martin Luther King e aos protestos dos estudantes americanos na década de 1960, e, já nonagenário, fez questão de marcar presença nas mais recentes manifestações Occupy Wall Street: “Desconfiem dos grandes líderes”, declarou nesse contexto à Associated Press, em 2011. “Desejem que existam muitos, muitos pequenos líderes.”
Companheiro de estrada de Woody Guthrie no início de carreira, com influência marcante na ascensão de uma figura chamada Bob Dylan (foi ele que o recomendou a John Hammond, que o contrataria para a editora Columbia), Pete Seeger era, como titula o obituário do Los Angeles Times, “a consciência da América”. Várias das suas canções foram alvo de diversas versões, muitas vezes com maior popularidade. Cantaram-no, por exemplo, Marlene Dietrich (em inglês, francês e alemão), Peter, Paul & Mary ou os Byrds. Em 2006 Bruce Springsteen dedicou-lhe um álbum inteiro, We Shall Overcome: The Pete Seeger Sessions.
Nascido a 3 de Maio de 1919 em Manhattan, Nova Iorque, viveu uma vida longa e preenchida, activa até ao fim. “Ainda há dez dias estava a cortar lenha”, contou a sua neta, Kitama Cahill-Jackson, ao Washington Post. Deixa na memória colectiva a sua imagem imponente, o rosto adornado pela barba icónica e, a tiracolo, o banjo, instrumento pelo qual se apaixonou ainda muito jovem e que divulgou incansavelmente. Isso e, claro, a sua voz, arma poderosa contra a opressão, qualquer que fosse a forma que esta assumisse.
A sua voz, incapaz já de atingir tom de tenor, pouco rico timbricamente, mas muito expressivo, que lhe ouvimos na juventude, continuava hoje a ser instigadora daquilo que Seeger via de mais precioso na música, a capacidade de reunir comunitariamente e de contribuir para a transformação do mundo. Nos concertos dos últimos tempos, limitava-se a lançar o início dos versos ao público e a deixar que este os completassem num coro de milhares – desejo de partilha que o público português pôde testemunhar, voz ainda intocada, em Dezembro de 1983, data do único concerto em Portugal de Pete Seeger, no Pavilhão dos Desportos.
Não por acaso, afirmava que as suas canções não eram verdadeiramente suas (fazia até questão de desvalorizar os seus talentos de compositor, afirmando que se limitava a adaptar velhas canções do cancioneiro do folclore e dos espirituais negros americanos). O seu forte sentimento comunitário, aliado a uma humildade desarmante, conduzia a afirmações como as dadas ao Guardian numa entrevista de 2007. Comentando o álbum que Bruce Springsteen lhe dedicara, disse que preferia que o cantor de New Jersey não tivesse utilizado o seu nome na capa. “Sobrevivi todos estes anos mantendo um perfil discreto. Agora o meu disfarce foi desmascarado. Se tivesse sabido antecipadamente, ter-lhe-ia pedido que só mencionasse o meu nome algures no interior.” Depois, enfatizou novamente o seu papel reduzido enquanto compositor: “Aquelas não são as minhas canções, são velhas canções, eu limitei-me a cantá-las.” Exemplo máximo, We shall overcome, o hino da luta pelos direitos cívicos nos Estados Unidos, hino intemporal para qualquer luta de oprimidos perante a opressão, tem a sua génese na canção gospel I'll overcome someday, de Charles Albert Tindley. Em 1948 surge publicada no People's Song Bulletin, dirigido por Seeger, com o título We will overcome. A sua única contribuição, diria depois o cantor, seria uma pequena alteração prática: "shall" adequava-se melhor ao canto que "will". Ainda assim, apesar de Seeger procurar a discrição, essa não foi uma marca permanente na sua carreira.
Filho de um musicólogo, Charles Louis Seeger, e de uma violinista, Constance de Clyver Edson, ambos professores na prestigiada Juilliard School, e enteado de uma compositora modernista, Ruth Crawford Seeger, segunda mulher do pai, Pete Seeger foi colega de John Kennedy enquanto estudante de Sociologia em Harvard, período em que se juntou à Juventude Comunista Americana. Desiludido com o percurso académico, teria os momentos definidores da sua vida quando, juntamente com o pai, viu uma velha cantora tocar o banjo de cinco cordas, que se tornaria o seu instrumento de eleição – usava um de braço longo, criado por si. “Gostei do tom vocal estridente dos cantores, da dança vigorosa”, recorda na biografia de David Dunaway, How Can I Keep From Singing, citado no obituário do New York Times. “As palavras das canções tinham todo o sangue da vida nelas. O seu humor era mordaz e não trivial. A sua tragédia era real, não sentimentalista.”
Pouco antes de assistir na Carolina do Norte àquele festival, começara a trabalhar na Biblioteca do Congresso Americano, fazendo catalogação e transcrição da música tradicional recolhida em todo o país. Fora convidado por John Lomax, histórico folclorista e amigo próximo de Charles Seeger. Essa música passou a ser a sua música e foi perante ela que ele se definiu enquanto músico, autor e intérprete.
Encontramo-lo então, no final dos anos 1940, enquanto membro dos Weavers, uma das bandas que se revelariam fundamentais no revivalismo folk com centro na Greenwich Village nova-iorquina (essa que os irmãos Cohen revisitam no recente A Propósito de Llewyn Davis). Durante o seu curto primeiro período de vida, os Weavers estiveram no topo das tabelas de vendas com uma versão de Goodnight Irene, original do mítico bluesman Leadbelly (que Seeger conhecera através de Lomax), e venderam em quatro anos cerca de quatro milhões de discos, números impressionantes para a época. Foi o momento de maior exposição mediática e sucesso comercial de Seeger, contrapondo com o breve período durante o início da Segunda Guerra Mundial em que percorrera os Estados Unidos à boleia ou saltando ilegalmente para os vagões de comboio, como o faziam os milhões de deserdados da Grande Depressão. Ganhava dinheiro tocando o seu banjo em cafés a troco de gorjetas. Aprendera as melhores técnicas para o fazer com Woody Guthrie, que se tornaria seu mentor e companheiro.
Tocaram juntos nos Almanac Singers, cantando canções antiguerra e anti-racismo e promovendo o poder sindical na luta por melhores condições de vida dos trabalhadores. A entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial acabaria com a banda. O fim da guerra traria o nascimento dos Weavers e a imagem inusitada de Pete Seeger no topo das tabelas de venda – “não consigo lembrar-me de um momento que ele sinta como menos importante na sua vida”, declarou Arlo Guthrie, filho de Woody, no concerto de celebração dos 90 anos de Seeger. A América em histeria anticomunista dos anos McCarthy não tardaria, porém, a voltar-se para ele.
Abandonara o Partido Comunista em 1950, em conflito com o estalinismo, mas não o invocou em sua defesa perante a Comissão de Actividades Antiamericanas. Recusando-se a qualquer denúncia declarou perante ela, em 1955: “Sinto que não fiz nada de natureza conspirativa em toda a minha vida. Não vou responder a quaisquer questões relacionadas com as minhas filiações, as minhas crenças filosóficas, religiosas ou políticas, ou em quem votei nas últimas eleições, ou qualquer um desses temas da minha privacidade. Julgo ser muito imprópria colocar essas perguntas a um americano, especialmente neste contexto de coacção” – na supracitada reportagem do Guardian, o jornalista Edward Helmore conta que, ao subir ao palco de um pequeno clube em Beacon, a terra nas margens do rio Hudson em que viveu desde os anos 1940, se apresentou dizendo: “Ainda me considero um comunista falhado.”
Condenado em 1961 a um ano na prisão, que não chegou a cumprir, foi colocado na lista negra, impedido de actuar na rádio e televisão e proscrito dos grandes palcos. Os Weavers terminaram (três dos quatro membros tinham enfrentado a comissão) e, no que é um aparente paradoxo, Pete Seeger entrou naqueles que considerou serem os melhores anos da sua vida. Passou a tocar apenas em universidades ou em pequenas associações locais. Adepto da máxima “pensa globalmente, age localmente”, revelou aos jovens estudantes a música americana que eles nem imaginavam existir e mostrou a todos os que o ouviam, dizia, que não era necessário entrar no jogo do comércio para viver em sociedade. Foi neste período que ouviu com atenção um jovem Bob Dylan, de quem se tornou conselheiro. E seria com Bob Dylan que viveria um episódio que entrou nos anais da história da música popular.
Em 1965, Dylan apresentava-se novamente no Newport Folk Festival, de que Seeger fora em 1959 um dos fundadores. Momento histórico: pela primeira vez, a jovem esperança da folk, a “voz de uma geração”, surgia acompanhado de uma banda eléctrica. Conta a lenda que, irado com o seu protegido, que trocava a pureza acústica do folclore pela selvajaria gratuita e burguesa do rock’n’roll, terá pegado num machado e tentado cortar a fonte de alimentação do palco. Seeger e outras testemunhas viriam a negá-lo. Estava irritado, sim. Não com Dylan, mas com o técnico de som que afogara as palavras do cantor sob o volume da guitarra – e Seeger achava que era importante que o público ouvisse os versos de Maggie’s farm.
Era difícil, de resto, imaginá-lo a tomar tal atitude. Se a guitarra de Woody Guthrie tinha inscrita no seu corpo “This machine kills fascists” (“Esta máquina mata fascistas”), no banjo de Seeger lia-se “This machine surrounds hate and forces it to surrender” (“Esta máquina cerca o ódio e força-o a render-se”). Firme nas suas convicções, corajoso na sua afronta ao poder, dono de uma coerência a toda a prova, Pete Seeger era um revolucionário humanista, crente no futuro – autor de música para crianças, afirmava que era impossível não acreditar no futuro quando cantava para elas.
O homem que fora sentenciado pelo Estado americano, que erguera a sua voz com Martin Luther King e 200 mil pessoas na Marcha de Washington contra a ignomínia desse crime legalizado que era a segregação racial; ele que amante e estudioso da tradição americana se mantivera sempre aberto ao mundo (cantou Guantanamera, cantou canções republicanas da Guerra Civil de Espanha, transformou uma canção russa sobre cossacos partindo para a guerra em hino anti-Guerra do Vietname, Where have all the flowers gone), seria, já septuagenário, distinguido por Bill Clinton com a Medalha Nacional das Artes, a mais alta distinção que o Estado americano atribui aos seus artistas. Cinco anos depois, em 1999, Cuba concedeu-lhe homenagem semelhante, a medalha da Ordem Félix Varela, pelo seu “humanismo e trabalho artístico em defesa do ambiente e contra o racismo”. A 18 de Janeiro de 2009, estava nas escadas do Memorial Lincoln cantando This land is your land, a canção do velho amigo Woody Guthrie, para o novo presidente americano, Barack Obama.
Nada disso o alterou. Continuou a tocar regularmente nos pequenos clubes nas redondezas de sua casa, que construíra na década de 1940 com a mulher, Toshi-Aline Öta (morreu em 2013, a dias de festejar os 70 anos de casamento), e a participar em acções de intervenção social e de activismo ecológico, principalmente em defesa da despoluição do seu amado rio Hudson. O humor mantinha-se intacto. Os locais lembrar-se-ão dos autocolantes que distribuía com o slogan “Gravity – it’s just a theory” (“Gravidade – é apenas uma teoria”), encorajando a que os enviassem para alguém no Kansas, o estado criacionista por excelência.
“A chave para o futuro do mundo”, afirmava em 1994, “é encontrar as histórias optimistas e torná-las conhecidas.” Pete Seeger encontrou as histórias e cantou-as. No processo, pelo seu exemplo e atitude, tornou-se também ele parte da história. Essa. Com agá maiúsculo.