A arte sublime de Miguel Poveda

Na noite de 26 de Janeiro, Miguel Poveda deu no CCB um dos melhores concertos de flamenco a que Portugal já assistiu. 5 estrelas.

Fotogaleria
Miguel Poveda no CCB Rui Gaudêncio
Fotogaleria
Miguel Poveda no CCB Rui Gaudêncio
Fotogaleria
Miguel Poveda no CCB Rui Gaudêncio

Miguel Poveda prometera, na entrevista ao PÚBLICO, uma noite “muito emocionante” com flamenco clássico e coplas. E não só cumpriu como fez – coisa rara – com que tal promessa se estendesse a todos os momentos da noite, e não só a algumas passagens. Tudo na sua performance em Íntimo, no Grande Auditório do CCB, primou pela elegância, pelo bom gosto, pelo exacto colocar da voz, dos gestos, pela gestão meticulosa do grito e dos silêncios, pelo melhor que a arte flamenca nos pode dar e a que, na afición do cante, se costuma chamar duende.

Porque uma coisa é ouvi-lo em disco, portentoso e exacto, na liberdade que tal exactidão revela, outra é vê-lo e senti-lo em palco, nessa filigrana de tonalidades e gestos que ele gere com notável sabedoria. Os músicos, dois, que o acompanharam, merecem partilhar tais elogios: Juan Gomez “Chicuelo”, na guitarra, é um vulcão de múltiplas cores, sereno ou explosivo quando a música o pede, mas sempre criativo na sua inquietude. Joan Albert Amargós, pianista e maestro (sim, dirige orquestras e como compositor tem vasta discografia com música de câmara e orquestral), brilhou em inventivos cromatismos, com um único deslize: quando usou o teclado electrónico junto ao piano, com que foi simulando baixos, para acompanhar um tema, soando a piano-bar.   

Tirando isto, foi um concerto sem pontos baixos (importante pormenor técnico: o som de sala foi dos melhores que já nos foi dado ouvir no CCB). Começou, imponente – um bom bocado depois de os músicos terem revelado, em duo, as suas capacidades – com Para la libertad, de Miguel Hernandez, numa primeira parte (em trio) em que celebrou os poetas. Além de Hernandez, também Ángel Gonzalez e Federico García Lorca, com quem fechou esta parte, cantando El poeta pide a su amor que le escriba: “El aire es inmortal. La piedra inerte/ ni conoce la sombra ni la evita.” Genial interpretação.

Depois vieram outros poetas: os do cante jondo, sobretudo os de Cádis, como Manolo Vargas ou Chano Lobato. E o duende de Poveda assomou ao palco, com acesa chama, embora sem os habituais “ale” da plateia a incentivar o cante (os poucos que se ouviram partiram de “Chicuelo”, aquela não era uma plateia de hábitos flamencos). Numa rapsódia flamenca, sem interrupções, ouviram-se, entre outros, Que disparate! e Triana, puente y aparte. Em tangos, soleás ou bulerías, a mesma excelência vocal.

Por fim, com Amargós ao piano, veio o momento das coplas, com vários temas do seu disco Coplas del Querer, de 2009, fechando com uma sentida homenagem a Enrique Morente (artista “valente e generoso”, disse Miguel), mestre da geração que revolucionou o flamenco e a quem tantos devem tanto no culto e na recriação desta arte.

No encore, já com os três músicos em palco, Miguel Poveda disse ao público que o aplaudira efusivamente: “Deixo parte de mim porque levo parte de vós.” Isto depois de cantar em castelhano o tema Meu fado meu, de Mariza (um fado escrito por Paulo de Carvalho), que ele gravou com ela, no filme Fados, de Carlos Saura (2007) e também com a Orquestra Nacional de Espanha, em 2010. Mariza que ele fez questão de elogiar, no palco do CCB, pela sua voz e pelo seu fado. Uma interpretação flamenca, sentida e depurada de quaisquer excessos.

Por fim, impelido pelos aplausos a regressar ao palco, cantou, numa versão admirável e em castelhano, o quase-hino Força estranha, de Caetano Veloso (precisamente a faixa que gravou no disco internacional de tributo a Caetano, editado pela Universal em 2012). Onde Caetano escreveu “por isso essa voz tamanha”, cantou Miguel Poveda “por eso mi voz se agranda”. Num e noutro caso, pura verdade. A voz tamanha de Miguel Poveda engrandeceu-se no CCB para um concerto absolutamente memorável, e repete-se, genial. Desculpem as cinco estrelas da classificação. É que não havia seis para dar.
 
 
 
 
 

Sugerir correcção
Comentar