Directores de escolas a exercerem mandatos autárquicos estão em situação ilegal
A própria Associação Nacional de Dirigentes Escolares admite que "há inúmeros casos" de alegada incompatibilidade e tenciona pedir ao provedor de Justiça que solicite a inconstitucionalidade do artigo que merece interpretações diversas, consoante os governos.
Quando em Outubro tomou posse como presidente da Assembleia Municipal de Braga, depois de eleita nas listas da coligação PSD/CDS/PPM, Hortense Lopes dos Santos já era directora do Agrupamento de Escolas Carlos Amarante, naquele concelho. Pela mesma altura, Alcides Sarmento director do agrupamento de escolas de Moimenta da Beira, eleito pelo PS, assumiu o mesmo cargo no respectivo município; em Seia, o director do agrupamento de escolas local, João Viveiro, garantiu a continuidade na assembleia municipal, como deputado socialista; em Cinfães, o director da secundária, Avelino Evaristo Cardoso, eleito nas listas do PSD, tomou posse como vereador (embora viesse a pedir a suspensão do mandato, em finais de Novembro, por motivos de saúde); e em Guimarães José Augusto Araújo, socialista, director da secundária das Taipas, tomou o seu lugar como membro da assembleia municipal.
Todas estas situações foram confirmadas ao PÚBLICO pelos próprios e Manuel Pereira, dirigente da ANDE, admite que estão longe de se tratarem de casos isolados. Há mais, disse, incluindo o seu: foi eleito para a assembleia municipal de Cinfães pelo PSD e no mesmo dia em que tomou posse pediu a suspensão do cargo, alegando incompatibilidade com as funções de director, até ao esclarecimento cabal da situação junto do MEC. Só há dias renunciou.
Através do gabinete de imprensa, o MEC explicou ao PÚBLICO por que nunca agiu contra situações que na sua perspectiva são ilegais: “Tanto a Direcção-Geral da Administração Escolar como a Inspecção-Geral da Educação e Ciência só podem actuar perante situações que sejam do seu conhecimento ou que lhes sejam reportadas”, informou, através de mensagem electrónica.
Para fundamentar a sua interpretação do artigo que estabelece as incompatibilidades do exercício do cargo de director (que se mantém inalterado desde 2008, apesar de ter havido alterações ao Regime de Autonomia, Administração e Gestão dos Estabelecimentos Públicos da Educação Pré-Escolar e dos Ensinos Básico e Secundário) o MEC cita a lei e a orientação do director geral da Administração Escolar, que foi objecto de um despacho com data de 14 de Outubro de 2013. Explica, ainda, que à data não emitiu uma circular sobre o assunto porque “a interpretação da lei não suscita dúvidas e a norma já se encontrava em vigor relativamente ao mandato autárquico passado (2009 - 2013)”.
Acontece que, como frisaram os vários directores eleitos nas listas do PS (o vereador de Cinfães e a presidente da assembleia municipal de Braga não quiseram fazer comentários), o Ministério da Educação do anterior Governo deu orientações opostas.
A lei especifica que o regime de dedicação exclusiva dos directores implica a incompatibilidade do cargo dirigente “com quaisquer outras funções, públicas ou privadas, remuneradas ou não” e entre as excepções, “expressa e exaustivamente listadas”, não estão as referentes a cargos autárquicos, argumenta o actual MEC.
“Perante precisamente o mesmo artigo, o então secretário de Estado da Educação, Valter Lemos, concluiu que não havia incompatibilidade e homologou um despacho nesse sentido”, frisou José Augusto Araújo, da Secundária das Taipas, que em 2010 protagonizou o caso mais mediático relacionado com este assunto, precisamente por acumular as funções de vereador e de director. Nesse despacho interno, em que anotou que dele se devia dar conhecimento às direcções regionais e à inspecção, Valter Lemos baseia-se num parecer da Procuradoria Geral da República para sustentar que o exercício de cargo executivo autárquico em regime de não permanência não deve ser considerado actividade profissional para efeitos de aplicação do regime de exclusividade em funções públicas.
José Eduardo Lemos, o recém-eleito presidente do Conselho das Escolas (um órgão consultivo do MEC), também disse ter na sua posse documentos da então Direcção Regional de Educação que em 2008 lhe permitiram assumir o cargo de director, apesar de ser membro das assembleias municipal e de freguesia da zona em que residia e trabalhava.
“Isto é próprio de um país em que se prefere assobiar para o lado a corrigir as leis mal feitas”, critica Manuel Pereira. O dirigente da ANDE acabou por renunciar ao mandato de deputado, depois de a mesa da assembleia municipal de Cinfães ter recusado a suspensão, alegando que não existia incompatibilidade de funções, ao mesmo tempo que o MEC o informava de que essa incompatibilidade existia.
“Se andarmos pelo país é o que vemos, em concelhos vizinhos: gente na mesma situação que eu, que se considera privada do direito constitucional de participação cívica e política, e outra que, com base numa outra interpretação do mesmo artigo feita por outro governo, exerce os respectivos mandatos na mais completa boa-fé, convencida de que está assegurada a legalidade”, disse.
O MEC não adiantou quais os motivos que justificam a incompatibilidade. Manuel Pereira e os directores de escolas contactados pelo PÚBLICO que aceitaram pronunciar-se sobre o assunto rejeitaram que ela possa resultar do facto de as câmaras terem representantes no Conselho Geral das escolas, que elege o director. “São três pessoas em 21 e podem ser da cor contrária. Terão sempre o peso que já tem”, comentou Manuel Pereira.
“A interpretação do MEC não faz sentido nenhum – a ser assim, com mais incompatibilidades do que um director escolar só o Presidente da República”, criticou Alcides Sarmento, que encara a presidência da assembleia municipal de Moimenta da Beira (“um órgão fiscalizador”, frisa) como “um direito e um dever de participação cívica”. Na sua perspectiva – e na dos pareceres que conhece, como faz questão de sublinhar – não está a cometer qualquer ilegalidade. “Estou de consciência tranquila e até considero ridículo que ponham em causa o meu direito a exercer o mandato para que fui eleito. Não estando previsto nas excepções, considerará o MEC que eu o facto de eu possuir um pequeno terreno e cultivar as minhas batatas e tratar das minhas vinhas é incompatível com o cargo de director?”, ironiza.
José Augusto Araújo, de Guimarães, acredita mesmo que, “colocada a questão em termos públicos, o MEC acabará por ponderar e concluir que o actual parecer não tem fundamento”. Considera que “não existe qualquer conflito de interesses” entre as funções e nem admite a possibilidade de ser destituído ou alvo de processo disciplinar. "Havendo dois pareceres em sentido contrário, de dois ministérios, um deles homologado por um secretário de Estado, Valter Lemos, no limite o MEC teria de nos informar de que teríamos de optar por um dos cargos”, defendeu, em declarações ao PÚBLICO.
João Viveiro, de Seia, tem uma perspectiva semelhante. Afirma que está a dar o seu “contributo cívico” e que não vê “como é que a função de deputado pode ser incompatível com a de director escolar”. Admite que a questão se coloque em relação “aos vereadores”, “que, mesmo sem pelouro, apenas com o voto, têm peso e podem influenciar decisões num órgão executivo”. Mas mesmo em relação a esse aspecto, diz, precisaria de analisar “melhor e com mais tempo” a situação.