Gisela João apresenta um fado “sem truques” na Casa da Música e no CCB
Depois da emergência nos meios fadistas e da euforia da crítica, é chegada para Gisela João a prova das grandes salas: esta quarta-feira na Casa da Música, sábado no CCB. Dois concertos esgotados para uma grande voz.
Quem já a ouviu, ao vivo ou no disco que tem como título apenas o seu nome (eleito melhor disco do ano pelo Ípsilon/PÚBLICO e pela revista Blitz), sabe ao que irá. A guitarra que traz tatuada no braço é apenas um símbolo, mas exterioriza aquilo que lhe vai na alma e a que ela se rende, de olhos fechados, deixando que a voz molde as palavras como ela as sente e quer dar a sentir. É disso que ela tem falado nas suas múltiplas entrevistas, como se falando sério brincasse.
A frase “sou uma miúda como outra qualquer”, que ela disse na redacção do PÚBLICO em Lisboa, num vídeo a propósito de ser disco do ano, é a um só tempo verdadeira e ilusória. Verdadeira porque a sua pose é ainda a de eterna menina (“adoro ser mulher e não quero perder o imaginário infantil”, disse ela há dias ao Expresso), ilusória porque o que lhe cresceu na voz transcende a aparência juvenil para nos transportar para algo maior, sem idade, o seu fado.
Com os sapatos da avó
Quem a vê hoje não a imaginará aos nove anos, com os lábios pintados de vermelho e caracóis, vestida de Amália, saia preta, xaile maior do que ela e os sapatos da avó. Há uma foto dela assim no Círculo Católico Barcelense, disse ela ao Ípsilon em 2013, e algo dessa imagem ainda se lhe cola à pele. “Às vezes”, disse Gisela à revista do Expresso, “penso que as pessoas mais sérias me devem ver como uma palhaça. Gosto de estar bem, mesmo não estando.”
Nascida em Barcelos, a 6 de Novembro de 1983, filha de empregados têxteis, foi a tomar conta dos irmãos que Gisela João ouviu na rádio Amália a cantar Que Deus me perdoe e viu naquele fado um retrato da sua vida. “Achei que era eu a cantar aquilo.” E se bem o disse melhor o fez. Gaiata ainda, vestia-se de Amália e cantava fados demasiado crescidos para a sua figura e voz. Que precocemente cresceu. Na única casa de Barcelos onde se cantava o fado, não havia sequer músicos. “Eu cheguei a fazer noites a capella, as pessoas iam lá jantar e eu estava lá sozinha a cantar a noite toda.” Depois foi para o Porto, onde “já era a sério”, mas quando chegou a Lisboa teve de começar do zero. Duvidou, exasperou-se. Pensava assim: “O que é que eu estou aqui a fazer, se em Lisboa é que se canta bem o fado e se há tantas meninas boas a cantar aqui o fado? O que é que eu vou fazer mais? O que é que eu vou fazer de diferente?” Mas acabou por começar mesmo a cantar numa casa de fados, o Sr. Vinho, de Maria da Fé, levada por Helder Moutinho.
Antes disso, porém, foi vocalista de um grupo nortenho, os Atlantihda, onde o fado se misturava com a música tradicional, o tango e a pop. Há um disco, de 2009, a testemunhar essa aventura. Mas foi no fado que Gisela João encontrou reconhecimento. De Maria da Fé, de Carlos do Carmo, de Helder Moutinho ou de Camané, que ela considera o seu “professor” (por tê-lo ouvido tanto) e que, no disco de estreia de Gisela João, sugeriu o “início de uma grande carreira”. Ela reage a tudo isto com espírito crítico. Gosta das atenções que lhe prestam mas acha que primeiro que tudo está o trabalho, o empenho, o esforço. Apesar dos nervos. Da avó, não calçou apenas os sapatos quando era miúda. Também lhe ouve os conselhos, sobretudo quando ela lhe diz: “No dia em que não ficares nervosa por fazer alguma coisa é porque já te estás marimbando.” E isso é a última coisa que ela quer fazer, agora que o fado a tomou nos braços para jamais a largar.
Os 14 fados que ela gravou em Junho de 2013 serão a base dos espectáculos. Alguns já entraram de modo definitivo nas nossas vidas, aos poucos, como coisa que se entranha para não mais sair: Vieste do fim do mundo (uma canção de João Lóio feita fado de forma superlativa), Meu amigo está longe (de Ary e Oulman), Primavera triste (de Aldina Duarte, no Fado Alvito), Sou tua (revisitação ardente de um fado antigo) ou a recriação de (A casa) da Mariquinhas, com letra nova da rapper (também nortenha) Capicua sobre a música imortal de Alberto Janes.
Impelida pelo destino
À veia minhota e “malhona” somou Gisela a alma fadista, impelida pelo destino. “Acho que nasci fadista e não tinha mesmo como fugir”, disse ela ao Ípsilon em 2013. O episódio do rádio, Amália a cantar enquanto ela lavava a louça e tomava conta dos irmãos, é apenas uma figuração desse destino. De resto, é a forma como ela encara o fado que faz com que ele soe de maneira tão profunda na sua voz. “O que eu sinto, para mim, é que o fado não tem brilhantes”, disse ao Ípsilon. Já antes, em 2012, dissera ao jornal i: “Estou completamente nua quando estou a cantar, a viver aqueles textos.” À Blitz afirmou: “Gosto das coisas muito simples, muito cruas.” Talvez por isso tenha, na entrevista ao Ípsilon, dito que é nas tascas que “acontece fado ao mais alto nível”. E à revista do Expresso: “O género que canto, quanto mais cru melhor é, e mais puro e cheio. Gosto de criar sensações nas pessoas e odeio, abomino, truques de magia.” Ouçamo-la assim.