No Plano Nacional para a Igualdade, o género feminino aparece entre parênteses
Orientações em vigor dizem que a Administração tem a obrigação de se referir explicitamente a ambos os sexos “de forma igual e paralela”. Secretaria de Estado diz que documento que enviou para publicação em Diário da República não tinha parênteses.
No V Plano Nacional para a Igualdade, Género, Cidadania e Não Discriminação (que estará em vigor até 2017) o Governo compromete-se a encomendar um estudo para avaliar até que ponto já se utiliza “linguagem inclusiva” na administração pública — seja nos balcões de atendimento ou nos documentos oficiais. Acontece que o próprio Plano da Igualdade, publicado no <i>Diário da República</i> (DR) no último dia do ano, não é um bom exemplo de linguagem que promova a igualdade, tendo em conta as orientações em vigor.
Inicialmente, na proposta de Plano Nacional, que começou por ser posta à discussão pública e que foi para consulta de vários especialistas na matéria, utilizavam-se expressões como “conselheiro/a...” — o que é um exemplo de “linguagem inclusiva”. Já a versão final, publicada em DR, contém expressões como “conselheiro(a)”. Qual a diferença? A barra deu origem a um parênteses.
É a própria Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG), numa publicação de 2009, que sintetiza as regras da linguagem inclusiva e sustenta que o parênteses pode ser lido como uma forma de menorizar a forma feminina das palavras. E não de a equiparar à masculina.
“Porque o emprego mais geral dos parênteses é para ‘intercalar num texto qualquer indicação acessória’”, como refere a Gramática da Língua Portuguesa, de Celso Cunha e Lindley Cintra, “não parece que seja esta uma forma adequada para uma representação simétrica do género feminino, uma vez que abre a possibilidade de interpretação como um reforço da ‘menoridade’ ou ‘subsidiariedade’ das mulheres”, lê-se no Guia para uma Linguagem Promotora da Igualdade entre Mulheres e Homens na Administração Pública, da CIG.
“Pai e mãe” em vez de “pais”
O Guia dá vários exemplos do que está correcto: “pai e mãe” em vez de “pais”; “trabalhadores e trabalhadoras estrangeiras”, em vez de apenas “trabalhadores estrangeiros”. O emprego de barras também é uma possibilidade, para economizar espaço: “o/a doente”, “o/a requerente”, “A/O Presidente”, “Os/As Estudantes”, “a/o funcionária/o”, “o/a aposentado/a”.
Todos estes exemplos são considerados “formas não discriminatórias que respeitam o direito de homens e mulheres à representação linguística da sua identidade” e que implicam “o reconhecimento de que nenhum dos dois sexos tem o exclusivo da representação geral da humanidade ou da cidadania”. E é assim que devem ser escritos impressos, leis, publicações, e sites dos ministérios.
Ora o V Plano Nacional, abundam formulações como: “dos(as) dirigentes”, em vez “dos/das dirigentes”; ou “Decisores(as) políticos(as)”, em vez “Decisores/as políticos/as”.
Contactada pelo PÚBLICO, a Secretaria de Estado dos Assuntos Parlamentares e da Igualdade, que tutela esta área, faz saber que os parênteses não foram introduzidos por si e que não estavam na versão do Plano remetido à Imprensa Nacional, para publicação em DR. Como lá apareceram, então?
“É verdade que a versão publicada em DR utiliza antes os parênteses. Esta alteração aconteceu aquando da publicação do Plano e a diferença prende-se com as regras de legística da Imprensa Nacional”, diz em e-mail enviado ao PÚBLICO. De resto, nota, não é a primeira vez que acontece: anteriores planos para a igualdade utilizavam a mesma formulação, ou seja, parênteses. Por causa das mesmas regras, que ditam como se fazem e escrevem leis.
Sobre se está a ser ponderada a republicação do V Plano, tendo em conta que ele próprio torna o tema da “linguagem inclusiva” tão relevante que até prevê a elaboração de um estudo para avaliar a sua utilização na Administração, a secretaria de Estado liderada por Teresa Morais diz apenas: “Não está tomada qualquer decisão de republicação”.
“Fico perplexa”
Sara Falcão Casaca, Investigadora do ISEG, da Universidade de Lisboa, e ex-presidente da CIG, não percebe. “Fico perplexa porque, na verdade, tanto o IV Plano como o V Plano não estão publicados com linguagem promotora da igualdade entre mulheres e homens. As barras são frequentemente convertidas em parênteses. Vamos, aliás, assistindo ao uso do parênteses… São várias as entidades oficiais, empresas, universidades que o utilizam”, diz em declarações ao PÚBLICO.
“Ora, esta é — na minha perspectiva — uma forma infeliz, igualmente discriminatória, de comunicação e de contemplar ambos os géneros gramaticais na linguagem, dado que remete para uma indicação acessória do género em parênteses, secundarizando-o. Está, portanto, muito longe do referencial da igualdade de género.”
Contactada pelo PÚBLICO, a CIG remeteu para a resposta da Secretaria de Estado.
Sara Casaca acredita que a linguagem usada na administração pública tem a obrigação de se referir explicitamente a ambos os sexos “de forma igual e paralela”. Sucessivos planos nacionais têm, aliás, previsto a adopção “de forma progressiva” de “uma linguagem inclusiva nos diversos documentos produzidos, editados e distribuídos” em linha com o guia da CIG, como se lê no IV plano, de 2001, ou no III, de 2007. O V Plano foi, aliás, mais longe, sublinha Sara Falcão Casaca: “É louvável a determinação em assegurar e avaliar o cumprimento pela Administração Pública”, da utilização de linguagem inclusiva.
A dúvida é esta: como é que se vai avaliar a aplicação de regras que as regras de legística da Imprensa Nacional não contemplam?
É verdade, prossegue, que o país atravessa “um período dificílimo, que muitas mulheres e os homens estão a passar por grandes dificuldades, mas isso não significa que descuremos outras questões fundamentais, relativamente às quais temos tentado a mudança, o progresso”. E a linguagem, diz, não é uma questão menor. “Aquilo que persiste, em muitas situações, é uma linguagem sexista, legado sociocultural de um contexto de supremacia do poder masculino” na política, na economia, na cultura, na linguagem.
Mas o problema de serem os próprios organismos que promovem a igualdade entre homens e mulheres a não dar o exemplo do que o Governo quer que seja a regra na administração pública, não é de agora. Em 2007, foi aprovada a nova lei orgânica da Presidência do Conselho de Ministros, que tutela a CIG. E logo no artigo 4.º desse decreto-lei lê-se que o novo organismo, que então substituía a Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres, deverá ser dirigido “por um presidente, coadjuvado por um vice-presidente”. A hipótese de “uma presidente”, não é colocada, apesar de até agora terem sido sempre mulheres a liderar a CIG.
Breve cronologia
1987: A UNESCO aprova Resoluções, em 1987 e 1989, adopta directrizes para um vocabulário que se refira explicitamente à mulher e diz que os Estados-Membros devem zelar pelo respeito das mesmas em todas as comunicações, publicações e documentos da Organização.
1990: O Conselho da Europa aprova uma Recomendação aos Estados-Membros no sentido do emprego de uma linguagem que reflicta o princípio da igualdade entre os homens e as mulheres.
2006: Em Portugal, o Regimento do Conselho de Ministros incluiu, nas regras de legística na elaboração de actos normativos pelo XVII Governo Constitucional, a utilização de uma linguagem não discriminatória de forma a “neutralizar-se ou minimizar-se a especificação do género através do emprego de formas inclusivas ou neutras”.
2007: O Conselho da Europa considera “a promoção de uma linguagem que reflicta o princípio da igualdade de género” como uma das seis Normas Gerais a seguir pelos Estados-Membros.