“Se insistirmos em cortar nas pensões estamos a agravar o problema da economia”
José Vieira da Silva, ex-ministro do PS e o rosto da reforma da Segurança Social de 2006, critica a estratégia seguida pelo Governo e diz que "poucas medidas têm uma natureza tão recessiva como o corte de pensões".
A primeira vez que se aprovou um corte nas pensões em pagamento, por via da Contribuição Extraordinária de Solidariedade (CES), foi num governo do PS. Foi o primeiro passo para as medidas que se seguiram, nomeadamente a convergência chumbada pelo Tribunal Constitucional (TC)?
Não estamos a falar das mesmas coisas. O que estava previsto em 2011 tinha a ver com uma contribuição excepcional aos rendimentos, incluindo os das pensões. Uma coisa bem diferente era a chamada lei da convergência, que implicava uma alteração da fórmula de cálculo de pensões que já tinham sido atribuídas.
Considera aceitáveis as alterações à CES que o Governo agora propôs em alternativa?
Com esta alteração o Governo está a tentar fazer passar a ideia de que também os pensionistas deveriam ser incluídos no esforço de consolidação das contas públicas, como se não estivessem. É difícil encontrar um grupo social em Portugal que tenha sido atingido de forma mais significativa. Esta política está a gerar uma degradação, com uma dureza e uma intensidade que nunca existiu no nosso país, das condições de vida num sector com menos capacidade de adaptação.
Neste momento temos mais prestações para pagar, mais desemprego e menos pessoas a contribuir. Neste contexto, é preciso pedir a quem já está a receber pensões que também contribua para a sustentabilidade, como defende o Governo, ou isso pode alcançar-se sem atingir os actuais pensionistas?
Há um esforço por parte do Governo e dos seus apoiantes para reforçar a ideia de que a raiz do problema está nas pensões. As questões da sustentabilidade do sistema de pensões não são muito diferentes da sustentabilidade do sistema de saúde, de educação, de segurança. O que acontece, em particular com o sistema de pensões, tem a ver com o facto de hoje termos uma economia que está a produzir aos níveis de há dez anos atrás. Ora é difícil uma economia a produzir, criar riqueza e a gerar emprego ao nível de há dez anos atrás, responder às necessidades de hoje. Depois temos as questões demográficas: a natalidade decresceu e, com consequências mais imediatas, temos a emigração. Não creio que exista nenhuma solução para os problemas agudizados por este recuo histórico, que não passe pelo crescimento económico. Sem que se volte a criar riqueza e emprego, dificilmente nos poderemos aproximar do reequilíbrio das contas da Segurança Social. Claro que isso não acontece num estalar de dedos.
Ao cortar nas pensões não se está também a comprometer o relançamento da economia?
Poucas medidas têm uma natureza tão recessiva como o corte das pensões. Não apenas porque muitos dos pensionistas têm uma elevada propensão ao consumo, como num quadro de desagregação do nosso potencial produtivo, as pensões compensam os rendimentos que se perdem no mercado de trabalho. Se insistirmos em encontrar aí uma receita fácil estamos a agravar o problema da economia. Não há aqui um milagre de alternativas. O esforço que está a serfeito pelos empresários e pelos trabalhadores e por todos os que se mobilizam para explorar as oportunidades dos mercados externos, tem limitações.
Mas entre o momento em que estamos e o momento em que a economia há-de retomar, é necessário fazer ajustamentos no sistema de pensões?
A medida do aumento da idade da reforma para os 66 anos, tal como foi tomada, é uma medida puramente orçamental de curto prazo. Em 2006, mudou-se estruturalmente algumas componentes do sistema e criou-se o factor de sustentabilidade a partir daí. Não nego que este aumento da idade da reforma possa ter estruturalmente um efeito positivo do ponto de vista financeiro. Mas o que se procurou foi não pagar pensões novas em 2014. Houve uma espécie de despacho: não se pagam pensões novas em 2014 e para isso mexe-se no factor de sustentabilidade e impede-se as pessoas de saírem, suportando o custo do aumento da idade da reforma. Tudo isto é feito com uma enorme precipitação. Esta medida acrescenta pouco e os custos em termos de credibilidade e de credibilização do sistema serão maiores do que os ganhos.
Acha que há uma estratégia por parte do Governo de descredibilizar o sistema?
Não sei se é estratégia ou incompetência. Que o têm conseguido, têm.
Fala-se muito que o sistema é pouco equitativo? É verdade?
Muito se diz sobre o nosso sistema de pensões… A ideia de que as pessoas contribuíram, com as regras que o Estado fixou, para a sua pensão é uma ideia elementar, certa e correcta. Há aqui um contrato, as pessoas contribuíram com o que o Estado lhes pediu e estavam a receber aquilo que o Estado definiu. Essa é uma ideia absolutamente essencial. Se há mérito no acórdão do TC [que chumbou o corte de 10% nas pensões acima de 600 euros em pagamento] é ter tomado uma decisão com base no princípio da confiança. O TC fez mais pela defesa do estado de direito com aquela decisão do que muitas declarações nesse sentido. A defesa do valor das pensões, já depois de terem sido sujeitas a uma forte pressão fiscal, deveria ser um aspecto central na condução da política portuguesa neste processo de ajustamento. Devia ser uma trincheira pelo seu valor civilizacional, mas também pelo seu impacto económico. Quando cortamos as pensões, estamos a abdicar de toda a ambição de contribuir para uma sociedade equilibrada. Tem sido demasiado fácil a tentação de utilizar aquela despesa.
Reconhece que é preciso repensar estruturalmente o sistema ou ele é adequado e temos de resolver o problema de outra forma?
Não creio que seja razoável ou viável pensar em grandes mudanças estruturais num momento em que temos necessidades de emergência. A única coisa de que se houve falar é do plafonamento. As pessoas deviam pensar porque é que, estando o plafonamento há tantos anos na agenda política portuguesa, ele nunca foi concretizado. Uma reforma dessa natureza não pode ser feita sem um consenso mais alargado. Duvido que haja condições políticas para isso e não há condições financeiras para reduzir as receitas da Segurança Social.
Vários especialistas e até alguns sindicatos falam na necessidade de diversificar as fontes de financiamento do sistema. Como é que isso se faz?
Sou conservador nesse domínio. Temos que distinguir o sistema na dimensão contributiva e não contributiva. Há quem fale noutras variáveis que não o salário, eu próprio já defendi essa ideia. O que se ouve mais vezes falar é que as empresas devem pagar não sobre os salários, mas pela riqueza que criam. Não creio que seja um bom sinal dizer que paga mais a empresa que cria mais riqueza. Se cria mais riqueza tem um papel de arrastamento na economia que vai gerar salários noutros sítios. Pode haver melhorias e o PS chegou a propor que a taxa social única fosse distinta em função da natureza dos contratos. É uma medida justa, mas difícil de aplicar na situação de crise actual.
Falou na necessidade de distinguir as prestações contributivas das não contributivas. As não contributivas deviam estar sujeitas a uma condição de recursos?
Para o futuro não tenho nada contra isso. Seria vantajoso que tivéssemos todas as prestações não contributivas sujeitas a condição de recursos, que sejam pagas a quem delas necessita. Mas isso também pressupõe que elas sejam utilizadas de forma activa e não deixadas mais ou menos esquecidas. O Governo dá como exemplo da sua sensibilidade social o aumento das pensões mínimas, mas nada faz para valorizar os instrumentos eficazes na redução da pobreza extrema. Se há instrumento que é eficaz a reduzir a pobreza entre os idosos é o complemento solidário para os idosos. Quantas vezes ouviu o Governo promover esse direito? Vez nenhuma, ela lá continua cada vez com menos recursos.
O Governo vai criar um grupo de trabalho para propor uma reforma do sistema de pensões. Qual a sua expectativa?
O memorando não fala em nenhuma reforma da Segurança Social. E não fala porque na altura era reconhecido que era um sistema mais sólido do que a maioria dos que existiam no espaço da União Europeia. Agora, para responder a uma decisão do TC, vai-se apresentar uma reforma. Tenho pouca expectativa.
Acompanhou o ex-primeiro-ministro na audição da comissão de inquérito do Parlamento Europeu (PE). Por que razão não foi convidado o ex-ministro das Finanças, Teixeira dos Santos?
Não faço ideia.
Qual a sua expectativa em relação a esta auditoria?
A minha principal expectativa já foi cumprida. É a primeira vez que o PE se envolve neste tema. Julgo que era muito importante que o PE desse conta do que é hoje uma evidência: estão-se a aprofundar assimetrias na União Europeia e o grupo que está a sofrer mais duramente com isso é o grupo dos países sujeitos a processos de ajustamento, seja com resgate ou sem resgate.
Esta auditoria poderá dar um contributo para o eventual programa cautelar?
Os relatórios do PE são sempre muito marcados pela sua concepção política. Talvez seja útil para o chamado pôs-troika.
Portugal terá um programa cautelar?
A situação de Portugal é ainda de grande fragilidade e com muitas incertezas. Todos os países sob stress financeiro têm visto baixar as taxas de juro nos mercados secundários. Um conhecido economista, Paul Krugman, chamou a isso o efeito [Mário] Draghi. Quer isto dizer que é da acção, da palavra e da intervenção do Banco Central Europeu que têm resultado os ganhos mais significativos na credibilização da dívida pública.
Isso é positivo?
É bom, no sentido em que aponta o caminho. A Europa caracterizou-se por chegar sempre tarde e com poucos meios às crises que se foram sucedendo a partir de 2010. Com a excepção das contas externas, todos os outros indicadores pioraram e ainda assim as taxas de juro têm vindo a baixar. A explicação é o efeito Draghi. É aí que continuará a estar a explicação de muito do que irá acontecer. Sem uma intervenção das autoridades europeias será muito difícil o regresso de Portugal aos mercados.
O PS está a preparar o programa eleitoral. O que é possível fazer de diferente?
Várias coisas são possíveis. Uma delas é ter uma posição em relação à Europa diferente da que o Governo português tem tido, de alinhamento com a posição dos credores absolutamente incompreensível. Portugal auto-assumiu todas as culpas do mundo. Temos de assumir as nossas responsabilidades, mas há responsabilidades muito sérias das autoridades europeias, na forma como evoluiu para uma Europa em que os interesses dos estados se sobrepõem aos interesses conjuntos do projecto europeu. Depois o Governo já teve dois discursos: entre o discurso de Vítor Gaspar e o de Paulo Portas há algumas nuances. O Governo falhou durante muito tempo e sistematicamente na gestão das expectativas dos portugueses e isso é algo que pode ampliar de forma muito grave os riscos recessivos na sociedade portuguesa. Há muito a fazer, mas para isso o PS precisa de se afirmar como essa alternativa. Tem agora oportunidade para o fazer. Está a preparar uma convenção para construir a sua alternativa e há umas eleições em que é expectável e desejável que tenha uma vitória significativa.
António José Seguro é a pessoa certa à frente do PS?
É a pessoa que o partido escolheu. E a pessoa que o partido escolhe é sempre a pessoa certa.