Alforria do espírito

“12 anos como escravo” revolta-nos por dentro e acelera o coração pois mostra que há tempos — não tão distantes assim — a cor da pele era motivo para se ser um bem comerciável, para se ser (como alguém no filme diz) “gado de luxo”.

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Algo em nós se prepara quando no início de um filme vemos surgir a legenda “baseado numa história verídica”. Concorrendo aos Óscares, “12 anos como escravo” tem tudo para arrecadar todas as estatuetas nas categorias em que está nomeado — e porquê? Porque conta com um desempenho sem mácula da parte de  Chiwetel Ejiofor no papel principal, porque faz Michael Fassbender encarnar o demónio branco que era o senhor dono de escravos, porque ?Lupita Nyong'o “abraça” o tronco onde é castigada mas, acima de tudo, porque tudo aquilo aconteceu.

Vivemos numa era de futilidades para uns e de desespero para outros. Para uns, a vida acontece como as efémeras, insectos que têm em média apenas um dia de existência: leve, sem grandes preocupações e com o único objectivo de continuar vivo até se deixar de estar. Para outros, o tormento dá-se na fecundação pois quem o espera já sabe o que o espera e há destinos que não se desejam a um filho. Posto isto, ver que alguém que na época áurea da esclavagista e “branca” América sobreviveu valendo-se da sua inteligência, força de vontade e ambição de provar que um homem livre não pode ser feito escravo faz-nos sair da sala de cinema a pensar que os nossos queixumes e lamentos não passam de, lá está, efémeras.

Ao longo dos séculos a subjugação do eu ao outro não só foi frequente como catastrófica, estando a História mundial manchada com momentos como “a minha religião é melhor que a tua” ou “a minha pele dá-me o direito de mandar em ti” e tudo isto devia causar em nós uma profunda vergonha (pessoal ou alheia, depende de cada um) pela capacidade de ser mau que só o ser humano demonstra. Infelizmente, no reino animal, quanto mais desenvolvidos os cérebros maior é a capacidade de castigar, discriminar e maltratar o outro, sendo que os seres humanos lideram a corrida ao “pior ser vivo do planeta”.

Por vezes, basta a revolta de uns poucos contra a maldade de muitos e, aí, faz-se de tudo para esquecer o que aconteceu, passando panos que ao invés de limpar a sujidade só a espalham ainda mais. Ignorar o passado violento e negro que a humanidade tem é a mesma coisa que ser mandado borda fora e tapar as orelhas: mais cedo ou mais tarde, vamos ao fundo e, connosco, vêm as histórias de sobrevivência, luta e esperança desmedida que fizeram alguns sobreviver para contar a versão que não vem nos livros.

Este filme revolta-nos por dentro e acelera o coração pois mostra que há tempos — não tão distantes assim — a cor da pele era motivo para se ser um bem comerciável, para se ser (como alguém no filme diz) “gado de luxo”. E o mais triste? A escravatura existe e que nenhum de nós se pense livre dela pois é tudo uma questão de, como aconteceu ao Mr. Solomon Northup, sermos apanhados no sítio errado pelas pessoas certas.

“12 anos como escravo” ultrapassa a ficção cinematográfica: é um dedo numa ferida tão aberta como as que povoam as costas de Patsey.

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