Morreu o poeta argentino Juan Gelman, um revolucionário na escrita e na vida
Deixa uma obra marcada pelo amor, a dor e a morte. Lutou contra a ditadura militar responsável pelo assassinato do seu filho e foi forçado ao exílio em 1976. Nunca deixou de se bater pelos direitos humanos, contra qualquer forma de poder absoluto.
“Não creio que chegue aos 100 anos”, disse ao jornal espanhol. “E ainda que queira ver casar os meus netos e ter algum bisneto, acredito que Deus, se existe, deve estar entediadíssimo com a sua eternidade.”
Gelman, que segundo a imprensa espanhola morreu tranquilamente, rodeado de familiares, sofria de uma disfunção ligada à medula óssea. “Cada día/ me acerco más a mi esqueleto”, escreve num poema em que fala da morte que se aproxima, disponível no site do El País. “Esqueleto saqueado, pronto/ no estorbará tu vista ninguna veleidade./ Aguantarás el universo desnudo.”
Autor de uma vasta obra em que a crítica social e política assume papel de destaque, foi por amor que começou a escrever, dedicando os seus primeiros poemas às paixões de juventude em Buenos Aires, onde nasceu. Esqueceu-se desses primeiros versos, mas não se esqueceu do nome de uma delas – Ana –, conta o El País.
Gelman trabalhou como jornalista, colunista e tradutor, e publicou várias recolhas de textos em prosa, mas foi essencialmente um poeta, tendo publicado mais de vinte livros de poemas. Violín y otras cuestiones(1956), El Juego en que andamos I (1959), Velorio del solo (1961), Cólera Buey (1965), Fábulas (1971) e Hacia el Sur (1982) estão entre os seus títulos mais populares, num percurso que lhe valeu vários prémios, como o Cervantes (2007), o mais importante das letras espanholas, o Neruda (2005) ou o Rainha Sofia de Poesia Latino-americana (2005).
Nas actas em que justificavam a escolha de Gelman, os júris dos vários prémios salientaram com frequência a sua lírica centrada nas coisas simples do dia-a-dia, nas pessoas e na natureza, atenta à injustiça e sensível à dor dos outros. Mas uma das grandes características da obra de Gelman era a capacidade de surpreender em cada novo livro. Um dos nomes que reconhecidamente ajudou a poesia latino-americana a libertar-se da excessiva sombra de Neruda e do seu lirismo épico e grandiloquente, Gelman foi sempre um poeta político, mas foi-o sendo de muitos modos: militante, irónico, coloquial, experimental.
Esse seu lado mais ludicamente experimentalista está bem representado nos capítulos Traducciones I e II, de Cólera Buey, e no livroTraducciones III. Los Poemas de Sidney West, nos quais Gelman inventa poetas de outras línguas e nacionalidades, que supostamente traduz para castelhano. Os poemas que atribui ao inexistente Sidney West são pequenas ficções poéticas em torno de personagens de uma também inexistente povoação dos Estados Unidos.
Ditadura e exílio
Filho de emigrantes ucranianos judeus, deve ao irmão mais velho, Boris, que lhe dava a conhecer Pushkin e outros grandes autores russos no original – língua que o então ainda muito jovem Juan Gelman desconhecia –, boa parte do seu fascínio pela poesia. Leu Dostoiveski, Tolstoi e Victor Hugo na infância. Aos 11 anos publicou, na revista Rojo Y Negro, o seu primeiro poema.
O seu pai, que participara na revolução russa de 1905, emigrara para a Argentina desiludido com o avanço do estalinismo, o que não impediu Juan de aderir à Juventude Comunista ainda antes do final da segunda guerra, aos 15 anos. Estuda Química na Universidade, mas não acaba o curso e, na primeira metade dos anos 50, concilia a poesia com diversos empregos, de camionista a vendedor de peças de automóveis. Em 1954 começa a trabalhar como redactor em revistas e jornais ligados ao PC argentino e, pela mesma altura cria, com outros jovens comunistas, o grupo literário El Pan Duro, no âmbito do qual publicará o seu livro de estreia, Violín y otras cuestiones.
Na sequência da revolução cubana, e acompanhando o percurso de outros intelectuais do partido, como o ficcionista Andrés Rivera ou o sociólogo Juan Carlos Portantiero, começa a afastar-se do PC argentino e a aproximar-se de uma esquerda mais radical. Em 1964 rompe definitivamente com o PC, afirmando-se “absolutamente convencido do seu direitismo”. O impulso libertário que o levará a integrar, mais tarde, a guerrilha urbana do movimento peronista dos Montoneros, já se sente nos seus poemas dos anos 60, um dos seus períodos mais criativos, com títulos como Gotán, Cólera Buey e o já referido ciclo de supostas traduções.
Ao mesmo tempo que trabalha em várias revistas e jornais e vai publicado os seus poemas, adere ao peronismo revolucionário e torna-se militante do movimento Montoneros. É numa missão ao serviço deste grupo que sai do país, em 1975, numa viagem à Europa que o golpe de Estado de Março de 1976 transformaria num longo exílio forçado. Gelman ainda reentra clandestinamente na Argentina logo após a implantação da nova e sangrenta ditadura das juntas militares, que irá ser responsável pelo desaparecimento de cerca de 30 mil pessoas.
Logo em Agosto desse ano, o regime rapta a filha de Juan Gelman, Nora Eva, de 19 anos, o seu filho Marcelo Ariel, de 20, e ainda a mulher deste, que estava grávida. Nora foi libertada alguns dias mais tarde, mas Marcelo, saber-se-á depois, foi torturado e executado em Outubro de 1976.
Dois anos mais tarde, Gelman é informado em Roma, por uma figura do Vaticano, que a sua nora, María Claudia, teria dado à luz num campo de concentração e que a criança estaria viva.
À procura da neta
Na década seguinte, o poeta viverá sucessivamente em Roma, Madrid, Manágua, Paris, Nova Iorque e México, conciliando a sua oposição activa à ditadura com um emprego como tradutor para a Unesco. No fim dos anos 70, repudiando a linha militarista dos Montoneros, abandona a organização e é condenado à morte por traição pelo seus ex-companheiros.
Quando a ditadura militar cai em 1983, Gelman continua a não poder regressar ao país, acusado por um juiz federal de envolvimento em alegados crimes dos Montoneros. García Marquez, Juan Carlos Onetti, Vargas Llosa e Octavio Paz são alguns dos escritores que protestam contra esta decisão judicial, mas só em 1988 foi retirada a ordem de captura. Gelman voltou nesse ano à Argentina, mas permaneceu pouco tempo no país e voltou ao México, onde vivia desde então.
Em 1990, uma equipa de antropólogos forenses identificou os restos mortais de Marcelo Gelman, que tinham sido lançados a um canal do Rio da Prata dentro de um bidão de azeite cheio de cimento. Os quatro homens responsabilizados pela sua morte – um deles, o então general Eduardo Cabanillas, que coordenava um centro clandestino de detenção e tortura – foram condenados em 2011, estando a cumprir penas que vão de 20 anos a prisão perpétua. Ao ouvir a sentença, Gelman garantiu ao El Paísque não tinha sentido nada: “nem ódio, nem alegria, nem nada.” Mas, ao questionar-se pela ausência de sentimentos perante uma decisão que esperava há 35 anos, acabou por escrever um livro de poemas, publicado em 2013, Hoy.
Ao longo dos anos 90 publicara vários outros livros de poemas e escrevera, com a sua mulher, a psicóloga Mara Lamadrid, Ni el Flaco Perdón de Dios, um volume que recolhe testemunhos de filhos de opositores presos e desaparecidos durante a ditadura argentina.
Em 1998, Gelman descobre que a sua nora, que nunca cessara de procurar, fora enviada para o Uruguai, no âmbito do tristemente célebre Plano Condor, como ficou conhecida a aliança secreta, apoiada pelos Estados Unidos, entre as várias ditaduras latino-americanas da época. Maria Claudía dera à luz uma menina no Hospital Militar de Montevideu, mas desaparecera logo depois. A sua filha, foi ilegalmente entregue à família de um comissário de polícia uruguaio.
Determinado a encontrar a neta, o poeta reclamou a colaboração das autoridades argentinas e uruguaias, mas deparou com a oposição do então presidente do Uruguai, Julio María Sanguinetti, com quem se envolveu numa polémica pública. Um grupo de escritores, entre os quais se destacaram nomes como Günter Grass ou o português José Saramago, que escreveu uma comovente carta a Sanguinetti, mobilizou-se para pressionar o governo do Uruguai a ajudar o poeta argentino na sua busca.
No ano 2000, a sua neta é finalmente encontrada e identificada. Vivia em Montevideu, chamava-se María Macarena e ignorava a sua história. Quando a informaram das suas origens, adoptou o apelido do pai e do avô. Chama-se hoje María Macarena Gelman é uma das menos de 600 vítimas da ditadura argentina – de um total e 30 mil - que, de alguma forma, “regressaram” a casa.
O corpo de María Claudia nunca foi encontrado, mas um juiz uruguaio, Pedro Salzar, deliberou em 2011 que existem provas suficientes de que María Claudia foi executada após ter dado à luz, e condenou várias pessoas por colaboração no homicídio.
A sua busca pessoal nunca alienou Juan Gelman do mundo que o rodeava e dos problemas dos outros. Profundamente crítico em relação à prevalência das determinações dos grandes organismos supranacionais – como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial ou o Banco Central Europeu – sobre as decisões políticas dos governos, Gelman apoiava ainda hoje movimentos de protesto como o 15-M, em Espanha, e o 132, no México, e mantinha, até há poucos meses, uma coluna semanal no diário argentino Página 12.
Continuava a passear, a fumar e a ler. Dizia que todos os poetas que conhecia tinham sentido de humor e falava baixinho, lembram os jornalistas do diário El País que o entrevistaram em Abril do ano passado. Rejeitava, como sempre, que associassem a palavra “comprometida” à sua poesia: “O lugar que a ideologia ocupa na subjectividade de um escritor parece-me muito pequeno.”