Ministra tenta esvaziar polémica do segredo de justiça
Paula Teixeira da Cruz diz que direito de informar está garantido. Ministra reage a auditoria que propõe suspender jornalistas que cometam o crime de violação do segredo de justiça.
“Não será o Ministério da Justiça a patrocinar nenhuma iniciativa que diminua um pilar fundamental do Estado de direito como o direito à informação ou a liberdade de imprensa", assegurou Paula Teixeira da Cruz. Desde a reforma penal de 2007 que os processos-crime são habitualmente públicos e a sua sujeição ao segredo de justiça é excepcional, tendo que ser fundamentada. Por norma, o segredo é determinado com o objectivo de proteger o sucesso da investigação, impedindo que os suspeitos criem obstáculos à descoberta da verdade.
Elaborado por uma equipa coordenada pelo procurador João Rato, o relatório sobre a violação do segredo de justiça foi encomendado por Joana Marques Vidal para resolver uma questão que, embora não sendo, segundo a procuradora-geral da República, das mais graves com que a justiça se confronta – os números apresentados nesta sexta-feira mostram-no – se tornou “instrumental” para garantir o seu bom desempenho. As propostas apresentadas sugerem alterações legislativas que possibilitem às autoridades policiais entrarem de surpresa pelas redacções dos órgãos de comunicação social em busca de indícios deste crime sem as limitações que hoje a lei impõe.
Poderiam apreender computadores e gravadores, por exemplo, e escutar as conversas telefónicas dos profissionais de informação, cuja actividade correria o risco de ser suspensa em caso de violação do segredo de justiça. Do elenco de medidas sugeridas pela equipa de João Rato faz ainda parte a aplicação de multas de montantes “verdadeiramente dissuasores” aos órgãos de comunicação social, a par da apreensão do material publicado.
O Sindicato de Jornalistas fala em “fúria punitiva" contra a comunicação social, enquanto o jornalista Adelino Gomes, convidado pela PGR para comentar o trabalho divulgado nesta sexta-feira, se mostrou perplexo por não estarem previstas maiores penalizações para os agentes da justiça que fazem chegar informações confidenciais às redacções. Uma ideia mais tarde retomada pela ministra da Justiça, quando, no seu comunicado, fez referência à “obrigação primeira de controlo do processo” por parte das autoridades judiciárias. E também pelo penalista Rui Patrício – que, apesar de elogiar a abordagem de “um problema sério até agora tratado com indiferença ou hipocrisia”, critica a forma como esta proposta “ataca umas partes do corpo com armamento pesado (o mensageiro), até um pouco pesado de mais nalguns aspectos, e outras com meros ralhetes ou boas intenções (os vários autores das mensagens)”.
Algumas propostas “são desproporcionadas e pecam por excesso”, anui o professor catedrático de Direito Penal Manuel Costa Andrade, numa primeira reacção: “É como matar uma mosca com um canhão de 18 milímetros”. André Lamas Leite, docente da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, também discorda da possibilidade de se recorrer às escutas telefónicas: “Não se duvida que as escutas podem ser um meio particularmente eficaz na investigação do crime de violação do segredo de justiça, mas tenho dúvidas quanto à proporcionalidade da sua utilização e quanto à sua indispensabilidade, requisitos a que toda a escuta telefónica tem de obedecer”. André Lamas Leite lembra ainda que a realização de buscas em redacções de meios de comunicação social pode conflituar com a liberdade de expressão e de informação e sublinha, quanto ao alargamento do uso das escutas, contraria a tendência de restringir a utilização deste meio de prova, face à sua especial danosidade e intrusão. Apesar das críticas, o professor da Universidade do Porto faz questão de aplaudir o trabalho liderado por João Rato, “com dados quantitativos, de direito comparado e de divisão geográfica, como não tenho ideia de ter sido já levado a cabo em Portugal".
O advogado Ricardo Sá Fernandes manifestou-se igualmente contra “o reforço das buscas” e o uso de escutas telefónicas neste âmbito. “Acho completamente absurdo, porque o crime não tem a gravidade que justifique o uso desses meios de prova”, sustenta ao recordar que a moldura penal máxima é de apenas dois anos de prisão. O advogado defende, porém, medidas idênticas às aplicadas no Reino Unido: “Em casos excepcionais e por períodos de tempo limitados, pode fazer sentido proibir a publicação de informação sobre determinados processos pela imprensa, quando isso for fundamental para o sucesso da investigação. E com isso resolvemos o problema". Já o advogado Teixeira da Mota reage com ironia: “Não tive possibilidade de ler toda a auditoria, mas constatei com satisfação que não há propostas de alteração legislativa no sentido da aplicação da pena de morte aos jornalistas que violem o segredo de justiça”.
O ex-bastonário da Ordem dos Advogados Marinho e Pinto também saiu a terreiro para criticar a auditoria: “Aos jornalistas, em determinadas circunstâncias, compete violar segredos”.
Em contracorrente, Paulo Saragoça da Matta, advogado e professor universitário, elogia a coragem das propostas e a independência do trabalho. “Não tenho problema com a utilização das buscas e das escutas com a parcimónia devida. A violação do segredo de Justiça é um crime fundamental para dignificar a própria justiça e a saúde da vida pública”, justifica. Apoia a sugestão de aplicar multas dissuasoras aos órgão de comunicação social e acredita que tal não viola a liberdade de imprensa. “Na maioria dos casos o que é propalado pela comunicação social são factos que não são verdadeiros ou não se prova em tribunal serem verdadeiros, sujeitando os visados a julgamentos na praça pública”, lamenta Saragoça da Matta.
Presente na cerimónia em que foi apresentada a auditoria, o ex-procurador-geral da República Souto Moura defendeu que é preciso ir bem mais longe e mudar mentalidades: “Nunca se chegará a lado nenhum enquanto subsistir uma cultura do espectáculo e da informação. Vivemos num mundo em que toda a gente acha que tem de saber de tudo e logo – o que constitui uma utilização demagógica das garantias fundamentais do cidadão no Estado de direito”.
“Se [as fontes judiciais] pedem ao jornalista para publicar determinada coisa e ele o faz, é no mínimo cúmplice da fuga de informação. E se é o jornalista que vai pedir a informação ao agente de justiça, então ele é o autor moral desse crime”, defendeu.
Joana Marques Vidal diz que assuntos envolvendo cidadania, liberdade de expressão e interesses ligados às investigações em curso têm de ser tratados “com pinças”, tendo mesmo admitido não concordar com todas as propostas da auditoria que pediu. “Tenho reservas em relação à utilização de alguns meios de prova” mais invasivos, declarou relativamente às escutas e às buscas nas redacções, interrogando em seguida: “Poder-se-á admitir que venham a ser admitidos em casos mais graves e mais complexos? É um debate que tem de ser feito, uma vez que se trata de matéria polémica.”