Este poeta devasso e virtuoso

Passageiro Frequente é um atestado do alto posto a que Daniel Jonas ergueu a sua escrita, que tem aquele carácter idiomático e fundador próprio dos poetas fortes — um dos mais fortes da poesia portuguesa actual

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Passageiro Frequente é o terceiro livro de poemas de Daniel Jonas, sucedendo a Os Fantasmas Inquilinos (2005) e Sonótono (2007) FERNANDO VELUDO/ NFACTOS

Há momentos neste livro em que o leitor acede a regiões bem altas, excepcionais (leiam-se, por exemplo, os poemas Casas, Imitação de vida e Paredes de vidro). A poesia de Daniel Jonas atravessa tempos diversos: o clássico, o romântico, o moderno, numa apoteose de rastos e linhagens que comparecem subtilmente. Nela encontramos, no mais alto grau, a ideia da linguagem poética como concentração e densidade. Ela é hábil nos jogos retóricos e de palavras, mas nunca deixa que isso se torne um exercício fútil e gratuito. De igual modo, a sua forte dimensão conceptual (de poesia pensante e auto-reflexiva) não elimina de modo nenhum o lado permeável às grandes tonalidades afectivas, por vezes até num grau exasperado, de poeta “decadente”, impregnado de consciência do fim.

Esta entrevista resulta de uma troca de e-mails. O método não foi decidido pelo facto de entrevistado e entrevistador estarem distantes (Daniel Jonas vive no Porto), já que se tratava de uma distância fácil de transpor. A entrevista por escrito correspondeu antes à vontade de entrar num “jogo” diferente daquele que é próprio das conversas gravadas.

Os Fantasmas Inquilinos e Passageiro Frequente podiam ser títulos de livros de mistério ou policiais. Gosta de fazer da poesia um jogo, como se ela fosse “a ocupação mais inocente”, como dizia Hölderlin?

Nunca me tinha ocorrido esse lado herculano, no sentido poirotiano, do termo. Mas sempre identifiquei a interpretação literária posterior como uma série de deduções amadoras à Poirot. Neste jogo particular, ganharia o detective literário que mais comovesse o perpetrador do crime e da fuga. Seria um jogo notavelmente honesto, note-se. O autor do enigma trataria de reconhecer o mérito da sua resolução, nos casos em que não houvesse claramente uma superioridade auto-evidente da solução para o problema. Comprometia-se a reconhecer uma aparente verdade. Claro que neste ponto não me passa pela cabeça que o vate poético seja o detentor da verdade exegética. E referia-me há pouco às deduções como sendo amadoras, no sentido em que este tipo de actividades não é propriedade da instituição universitária ou da comunidade de críticos literários mais ou menos avençados à mesma instituição, e em que por Poirots não se entenda exactamente um profissional liberal admiravelmente rebelde e competente. Mais do que Poirots, parece-me que o nosso excedente são Pierrots, que é o que chamaria a muitos tarefeiros em jornais e revistas que fazem uma actividade parda. Mas temo ter falado mais de outros…

E eu temo ter evocado o nome de Hölderlin em vão, depois de lhe oferecer as pistas policiais que, como se nota, fazem as delícias de um poeta dotado de uma “malvadez estética”, para utilizar uma expressão do Schlegel que já uma vez me serviu para falar da sua poesia.

A invocação de Hölderlin não terá sido totalmente em vão. Creio que resulta dessa “malvadez estética” schlegeliana de que fala, no sentido em que Hölderlin é um dos mais inclassificáveis poetas. Quando fala da minha poesia como um jogo, um tipo de enigma policial, penso que aludirá a uma certa desorientação de leitura que ela provoca, um encriptamento que aliena de certo modo o leitor. O que noto é que, sendo a minha poesia pouco amiga do leitor, pouco dada a grandes ajuntamentos fruitivos, é também geradora de uma certa estupefacção, uma certa curiosidade, interpelando um gosto vago, sem uma classificação particular. Esta atracção poderá relevar também de um certo enquistamento do observador, que é capaz de descrever aquele objecto como tratando-se de alguma coisa revestida de interesse mas não propriamente definível. É esse apelo, quanto a mim, o não conseguir explicar o porquê do magnetismo desse metal, a dificuldade em classificá-lo numa tabela periódica literária. Muito daquilo que nos interessa em arte não é necessariamente explicável ou, melhor dizendo, entendível. O que é fundamental é que seja conforme a fins, para usar Kant, ainda que esses fins não sejam muito claros. Há em nós um arqueólogo que anseia por datar e localizar com a máxima precisão possível um artefacto, e enquanto isso não acontece não sabemos se poderá pertencer ao nosso museu de gosto. A malvadez talvez venha daí, de nos julgarmos obrigados a explicar a razão de ser da nossa “química”.

De facto, era para aí — mas não exclusivamente — que eu remetia quando falava de “malvadez”. Digamos que a sua poesia se faz contra o sentido, contra a interpretação. Não receia muitas vezes que isto se torne uma espécie de “dialéctica negativa”, ao mesmo tempo tortuosa e talentosa?

Há, certamente, um lado malsão, possivelmente intimidatório ou até instigador de repulsa decorrente desse tipo de texto que não se deixa aprisionar. Não o faço como programa, não é um ethos que eu determine à partida. Não é minha intenção alienar ninguém nessa recepção. O texto escolhe os seus leitores, é determinista, já constituiu os seus eleitos, mas no sentido arminiano, não calvinista. Penso que se alguma coisa define o que faço é uma certa heresia em que tudo é convidado a entrar. E creio que alguma da minha poesia é razoavelmente imediata, instantaneamente refrescante. Quando falou em “contra a interpretação”, levou-me para um ensaio de Sontag. No meu caso, acho desejável que a importância espiritual da arte ande de braço dado com a importância intelectual. O problema é que quando o intelecto que dela usufrui se dá por frustrado, denigre ou aborrece a arte em claro despeito. Gostava até que a minha poesia obedecesse ao motto da guitarra de Woody Guthrie, “This machine kills fascists”, tomando por fascistas um tipo de leitores, diria de beletristas bordadeiras. Há leitores cujo reaccionarismo se verifica na sua reacção despeitada proveniente da interpretação falhada. Estão sempre à espera de uma compensação erótica. Aliás, a poesia deixou de dar trabalho, deixou de ser um tipo de linguagem concentrada, como apontava M. S. Lourenço em Os Degraus de Parnaso. Sem querer parecer edificante, penso que a poesia deveria ser capaz de formar, vitaminar, exercitar, ser uma lenha sempre combustível. Há pouco referiu Hölderlin. Todo aquele bonapartismo romântico representava uma leitura dissociada da mentalidade vigente, uma linguagem próxima da loucura. Acrescento-lhe Wordsworth. Movimentos aparentemente simples que em nada chocam a nossa psicologia actual e que seriam à época ilegíveis. Por favor, não pense que me ocorre posicionar-me neste tipo de linhagem extraordinária. O que digo é que a poesia nunca faz sentido na sua acepção hierática, profética. São palavras que não têm qualquer tipo de utilidade no Zeitgeist. Os leitores de poesia são, não poucas vezes, leitores rancorosos, senão reaccionários, que alienam preventivamente aqueles por quem julgam poderem vir a ser alienados. Mas em todo o caso a poesia não tem sentido. Não é que não faça sentido. E é, não raramente, uma descarga purulenta de matéria residual de espíritos nervosos, obsessivos e algo abstractos.

Quando diz que “a poesia deixou de dar trabalho”, está a referir-se criticamente a muita poesia actual. Mas, nas suas palavras, a tarefa do leitor também merece um forte correctivo…

Tal como há vários tipos de poetas, vários são os tipos de leitores, interessados nos seus poetas, tal como os poetas estão, por sua vez, interessados nos seus leitores. Um poeta escreve sempre para o seu leitor, independentemente do velho disclaimer que professa escrever o poeta apenas para si próprio, assumindo uma má disposição ensimesmada. Aliás, esse interlocutor com quem o poeta se corresponde é, na verdade, ele mesmo, na medida em que o leitor reflecte, justamente, o seu poeta de eleição. Em todo o caso, e no que toca à tarefa de um leitor especializado, um leitor virtuoso, um pouco na esteira do pensamento do crítico inglês Matthew Arnold, para quem a verdadeira arte deixaria de fora toda a sorte de charlatanismo, tal leitor deveria ser capaz de identificar a poesia capaz, já que a poesia deveria constituir-se um exemplo de virtude. Convenhamos que nada poderia estar mais longe das preocupações dos leitores actuais. Ninguém lê poesia para tentar perceber como orientar a sua vida. A poesia é, no nosso espaço público, e não obstante aquela litania que diz que Portugal é um país de poetas, um parente pobre dessa descrição de Arnold. Sem crítica literária capaz, a produção poética é, no mínimo, embaraçante, e sem produção poética virtuosa a crítica formadora não é viável. O lugar da poesia está confinado a umas urnas cinzentas com tribos mais ou menos identificadas, ligeiramente saturninas. Para lá desses lugares de holocausto e dos seus sacerdotes, a crítica há muito acabou e o que nos resta são umas recensões anódinas que se limitam a parasitar nos cadáveres que exumam. O mais das vezes essas recensões são uma paráfrase intolerável daquilo que avaliam. A tarefa de um leitor capaz passaria, em certo sentido, por inviabilizar a poesia nefasta e descartável. Mas esse leitor deveria ser formado por um poeta que o chamasse a existir através de estímulos intelectuais exigentes. Os identificadores de profetas, uma espécie de Baptistas na sua virtude máxima ou de São Paulos apostólicos na sua contingência histórica, não têm lugar no nosso sistema pagão. A recepção da poesia no nosso espaço revela-nos que muitos são os charlatães.

Apetece-me reagir ao que acaba de dizer com aquele grito que a Madame de Merteuil lança numa carta ao Valmont: “É a guerra!”. Se ouso evocar tão pérfida personagem, não é tanto pela sua resposta, mas porque a sua poesia tem algo de libertino, com um acento anacrónico.

Consigo ver a razão pela qual me coloca fora da órbita do discurso poético da actualidade. Talvez a minha forma de profetizar seja a contrario, pela via de um protesto anacrónico. Embora não o faça intencionalmente. Mas talvez essa seja uma razão para a minha eventual expatriação. Em todo o caso parece-me que o que faço visita várias ermidas, embora o século XVIII seja talvez o menos visitado das minhas leituras. Não posso, pois, dizer que a minha libertinagem radique num consumo setecentista, e talvez por isso a sua observação seja ainda mais acertada. Não preciso de consumir aquilo que sou!

Um profeta voltado para o passado, era como o Schlegel definia o historiador. O poeta, esse, passou há mais de um século a responder ao imperativo “il faut être absolument moderne”. Não vai certamente dizer que é impermeável a tal injunção de Rimbaud. Do que é que se sente, afinal, contemporâneo?

Para responder sem medo de falhar diria que me sinto contemporâneo de mim. A injunção de Rimbaud faz confundir poética com fúria juvenil, uma juventude inquieta cuja produção poética é uma descarga violenta de testosterona. Mas essa descarga seminal pode ser incrivelmente classicista. Muita da minha poesia teve essa rebeldia sem causa como leitmotiv. A poesia é uma forma de nos estamparmos de mota na segurança do lar. Quando afirmo que sou contemporâneo de mim, apresento-me como um heterodoxo de uma religião unipessoal. Os meus interesses são semelhantes às minhas leituras conscientes e ignoradas, aos meus socalcos psicológicos, aos meus humores isabelinos. O poliedro resultante disto pode ser uma questão de estilo ou um problema clínico. Mas para não fugir radicalmente à minha autodescrição, poderia dizer que me sinto tão contemporâneo de Ossip Mandelstam como de Yeats, de Cinatti como de Ungaretti, ou seja, as leituras e as pátrias mentais e cronológicas são tão diversas que não é simplesmente possível fazer esse género de cartografia. Sou é bastante mimético.

Permita-me que introduza uma questão da ordem da meta-entrevista: já tinha pensado alguma vez na entrevista ao escritor como um género, com convenções, preceitos e teatralidades?

Já tinha evidentemente fruído desse género sem saber que era muito legitimamente um género. Agora sim, passarei a entendê-lo como tal! Talvez aquilo a que chama teatralidade tenha que ver com o facto de a distância cronológica e física poder introduzir um valor literário e que possamos ferir um certo valor ético em benefício de um estético. Em todo o caso não deixa de ser entusiasmante estarmos a discutir questões de género, o que nos aproximaria também de um lado ensaístico. As entrevistas, aliás, têm algo de socrático, sendo uma espécie de passeio peripatético. O francês leva-me para a entretien e não consigo deixar de pensar que tudo isto é entretenimento, a própria poesia também o é, e o poeta é um entertainer.

Seguindo a sua ideia, talvez seja possível traçar duas vias, na história da poesia, que se vão cruzando, alternando e combatendo: a poesia como entretenimento e a poesia que transporta consigo todo o peso do mundo e os abismos do sujeito. Parece-me que você se situa mais do primeiro lado, sem deixar no entanto de espreitar o campo oposto. Em suma: é um poeta devasso que gosta de ter presente as regras puritanas...

Ou seja, coloca-me do lado dos devassos que chegam a fingir que é dor a dor que deveras sentem. Mas não enjeito essa arrumação. Pareço, de resto, estar a afectar a poesia a duas grandes vias, a via excruciante do sofrimento hermenêutico e a via bela do cândido desprendimento, que é a do entretenimento. Embora possam parecer divergentes, são complementares. E neste ponto regressamos ao jogo. Há de facto um lado perverso de pulverização de enunciados na minha poesia. E se ali puder esconder verdadeiros abismos do ser num arrazoado aparentemente devasso, isso resulta de uma espécie de endurance evangélico. Por exemplo, quando Jesus exorta quem jejua a mostrar não um rosto macerado pela penitência alimentar mas antes uma cara lavada e enxuta, implicando que o sofrimento não deve ser visível. Creio que parte da devassidão que resulta da minha poesia nasce de certa forma deste entendimento espartano. Há também o outro lado, em que me induzo um estado inicialmente postiço de sofrimento de modo a poder abrir um canal que faculte a erupção criativa. Há poetas cuja alucinação chega ao ponto de imaginarem um desastre pessoal preventivo de forma a experimentarem um dado estado melancólico onde incubam a verve que procuram. Nesse aspecto tudo é cómico e devasso. Certamente me incluo neste grupo.

Tentemos fazer uma pergunta que opera um zoom sobre o poema que dá o título a este seu último livro: o “passageiro frequente” surge como que caracterizado socialmente, e então começamos a perceber que a sua poesia está impregnada de realidade social e urbana e que você também tem algo de “poeta lírico no apogeu do capitalismo”. Até o spleen está lá...

Isso está de alguma forma presente no contraponto entre os poemas Paralelepípedos espelhados, que aponta para as catedrais monolíticas e monocromáticas da City, e Paredes de vidro, choramingando as lágrimas de luz das catedrais góticas. Concordo com o que diz, embora me imagine mais um poeta lírico no apogeu da industrialização. Daí o spleen. Há um lado decadentista, um ruir de um certo romantismo serôdio que assiste à electrificação de tudo. Mas o meu spleen é nostálgico. A minha melancolia assenta as suas raízes fora do seu tempo, relativamente indiferente a desagregações contemporâneas, antes ressentindo-se ainda de desagregações antigas de edifícios idealizados. O “passageiro frequente” tem que ver com esta instância de um grau de volatilidade tão frequente que se torna estável. Tal como um corpo que transita frequentemente de um lado para o outro adquiriu uma certa estabilidade. O tempo foi o mediador dessa passagem que se tornou estável. Este lamento é observado também na violência que é imposta a um romântico que é obrigado a assistir ao declínio do seu lirismo diante das botas lustrosas e inflexíveis do realismo capitalista, como diz.

Vamos terminar com esta pergunta: que tempo é o seu, que se define como um romântico serôdio?. Desta entrevista, concluiria que é um tard venu, alguém que não coincide exactamente com o seu século...

Precisamente. Os poetas são, aliás, seres proverbialmente estranhos ao seu mundo, entes deslocalizados cuja sensibilidade se manifesta na sua linguagem, que é sempre expressão do seu desacordo com o século. Diria, aliás, que isso é um definidor de poesia, esse linguajar estranho ao nosso mundo. O poeta é marcado por um sinete em brasa, por vezes encomiasticamente, por vezes depreciativamente. Essa marca aponta aquele gado como pertencendo a outras pastagens. As pastagens são linguísticas. Quando se diz de alguém que “é um poeta” ou que teve uma saída à “poeta”, fala-se de linguagem e do efeito de frases e do que as frases podem fazer por nós e pelo nosso conceito de mundo, ou seja, coisas que a linguagem quotidiana não é capaz de fazer. Mas não tenho a certeza de que o tempo da minha poesia seja o meu. Por vezes, pareço habitar numa região lógica pouco compatível com aquilo que faço nas regiões das musas. Que regiões são essas, a que tempo pertencem, di-lo-á o carbono 14 exegético de quem me lê. Em todo o caso, a vaga personagem de “passageiro frequente” é “tardiamente chegado”. Esse tard venu não é tão visível ainda neste livro. Talvez se surpreenda aqui com mais facilidade por uma questão de conseguirmos reconhecer mais facilmente um ethos deslocado num enunciado moderno ou contemporâneo. Talvez o próximo livro possa clarificar ou pulverizar ainda mais esta questão de identidade. 

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