A proficiência para unir com absoluta solidez num mesmo discurso musical elementos da música erudita contemporânea e do jazz era, em tempos recentes, coisa para levar quase uma vida inteira a alcançar — salvo um par de iluminadas excepções. Só ao cabo de muito desmontar tijolo a tijolo as fronteiras erigidas na mesma vizinhança é que um fenómeno de libertação rompeu com forças que muitas vezes se repeliam: ou aceitavam a rigidez escrita ou se submetiam à total maleabilidade improvisada. Para a pianista eslovena Kaja Draksler, assim como para a portuguesa Joana Sá, esses acessos já não parecem reservados a longos processos nem à dependência de fortes cenas locais. Quer uma quer outra fazem-no sobretudo a partir de um lugar isolado, de escavação pessoal.
The Lives of Many Others é um objecto de notável arrojo e soberba concretização para uma pianista de 26 anos que se aventura a solo com uma segurança de quem nem deve tremer se apresentada ao fantasma de Thelonious Monk. Kaja começa por martelar ritmicamente o piano, lembrando-nos da sua natureza percussiva e começando um baile recorrente em torno de uma das suas principais referências: conferir fantasma da frase anterior (é ouvir Delicious irony). Mas a forma como constrói e desconstrói os seus temas, em gincanas melódicas e harmónicas, oferece visitações a Cecil Taylor ou à escola da improvisação europeia, ao mesmo tempo que deixa cair sobre as cordas do piano, com peso e medida, resíduos aparentemente soltos do património esloveno. Nas mãos de Kaja Draksler, o piano, de facto, soa a um ponteiro que muda constantemente de pólo, mantendo uma coerência e uma inteligência discursiva imperturbáveis.
Ao contrário de outras propostas semelhantes, Draksler tem ainda a destreza criativa e a audácia de não assinar composições de aleatoriedade gratuita que muitas vezes apenas camuflam a falta de ideias. Em todo o álbum, há esqueletos, estruturas mais ou menos complexas a que se consegue deitar a mão, não vingando uma ideia traficada de peito cheio mas de cabeça vazia do que o jazz pode ser hoje. Isto é outra coisa.
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