O Inverno da investigação

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1. Este ano o Inverno chegou à investigação das Humanidades e Ciências Sociais com a força de uma hecatombe. Um autêntico desastre, de consequências imprevisíveis, a revelar uma total desorientação por parte de quem nos governa! A Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), sob tutela do Ministério da Educação e Ciência, com responsabilidades no financiamento da pesquisa em Portugal, perdeu o controlo sobre o processo de atribuição de contratos de investigação por cinco anos. E, apesar de ser obrigatório reconhecer que o número de contratos a concurso até aumentou, passando de centena e meia para duas centenas, a contestação está por todo o lado. Porquê?

Mariano Gago, em entrevista ao Expresso do passado dia 14, pôs o dedo na ferida, e denunciou a política errada de falta de confiança nas instituições universitárias e de pesquisa. Na mesma linha, poder-se-á argumentar que a responsabilidade na criação de concursos altamente contestados denuncia falta de autoridade, mais propriamente científica, por parte de quem decide, governa e torna obscuros os meandros de um processo que não tinha, até agora, sido objecto de tanta discussão. Muito concretamente, em todas as áreas se torna evidente que não foram contempladas candidaturas de excelência. Qualquer que se seja o sentido que se atribua à putativa “excelência”, irmã gémea do “empreendedorismo” — um chavão a pretexto do qual se reduzem custos para aumentar produtividade.

No que respeita às ciências sociais e humanas, há dois aspectos interligados que podem ajudar a perceber as referidas faltas de autonomia e autoridade. Refiro-me à remodelação do Conselho Científico na mesma área, que se politizou partidariamente e para o qual o ministro da tutela começou por nomear a sua própria mulher e um amigo de juventude, director de um centro de investigação sempre mal classificado pela própria FCT. Bem mais importante ainda é mencionar que o número de contratos foi reduzido para metade. Ou seja, se em 2012 foram dados cerca de 20% do total dos contratos às ciências sociais, este ano os mesmos passaram para quase 10%.

Pertenci ao anterior Conselho Científico das Ciências Sociais e Humanidades da FCT e assisti a tentativas do mesmo género para reduzir a importância da área. Por isso mesmo, percebo bem que só graças a um novo Conselho — com menos autonomia, autoridade e experiência — foi mais fácil fazer gato-sapato. Mais. Com a redução do número de contratos atribuídos à área em causa, é normal que tenham vindo ao de cima possíveis escolhas arbitrárias, algumas distorções parciais e, sobretudo, uma enorme incapacidade para fazer reconhecer como legítimos critérios de avaliação que não são uniformes.

2. A ausência de reconhecimento que suscita uma instituição como a FCT, ou seja, o pôr em causa de uma instituição do sistema de investigação em Portugal, está presente em muitas outras escalas do frágil edifício científico que caracteriza as humanidades e as ciências sociais. Um inventário, mesmo que incompleto, das debilidades deste edifício não implica que tivesse existido uma qualquer época dourada, do passado recente ou longínquo.

Arrisco mesmo traçar um diagnóstico das debilidades em causa, a partir de cinco grandes linhas, sem preocupações de as apresentar por ordem. Antes de mais, o modo como as carreiras se organizam favorece a figura do professor transformado em administrador, aspirando a um poder de direcção, mas totalmente separado da figura carismática do professor reconhecido pelas suas investigações, criações e capacidades de inovação. Num quadro dominado pelos administradores burocratas, os que investigam raras vezes têm capacidade para impor as suas escolhas, sobretudo quando se trata da nomeação dos mais jovens e brilhantes investigadores. Logo, as nomeações dos mais jovens acabam por ser decididas quer por meros critérios de gestão, quer por parte dos que chegaram ao poder por via administrativa.

Num quadro de cinzentismo e de depreciação do valor dos mais carismáticos professores-investigadores, alguns dos critérios de excelência e de internacionalização — duas das palavras mágicas dos diplomas que organizam a investigação em Portugal — assumem carácter meramente formal. Por exemplo, conheço quem por ter passado umas semanas ou uns meses com o cartão de uma qualquer biblioteca universitária norte-americana exiba os galões de “visiting scholar” ou mesmo de “visiting professor” desta ou daquela universidade da Ivy League. O mesmo se passa em relação à participação em colóquios ou em redes ditas internacionais. É que são sobretudo dignos de pacóvios muitos dos casos de puro exibicionismo de sinais exteriores de internacionalização. Curiosamente, são os professores-administradores os que mais ufanos se mostram na acumulação de tais títulos de internacionalização — que fazem sorrir uma nova geração de investigadores que, apesar de precária, se tem mostrado muito mais capaz de se internacionalizar.

Atribuo à obsessão pelos critérios bibliométricos o mesmo peso que um professor-administrador incapaz de distinguir entre níveis aprofundados de fazer ciência e as meras obras de divulgação. Claro que, pelo menos nas humanidades e ciências sociais, a bibliometria tem dois tipos de utilidade. Por um lado, serve para encontrar um critério de aparente objectividade que esconda situações de inegável arbitrariedade quando se trata de escolher, classificar e nomear. Por outro lado, permite que as escolhas meramente administrativas se baseiem em indicadores de produtividade e de boa gestão. Aqui bate, talvez, um dos pontos de maior dissolução de todo o edifício: a incapacidade de impor verdadeiros critérios de inovação científica baseados numa cultura crítica, analítica e problematizadora.

Não é, aliás, por acaso que os maiores defensores da bibliometria quantitativista são os que mais facilmente definem a investigação a partir de temas — não de problemas — com falsas preocupações de exaustividade. É que as listas de temas, tal como em muitos casos a exibição de teorias, modelos e metodologias, a cargo dos que já foram denominados como os seus cães de guarda, servem para demonstrar uma espécie de poder e para criar a ilusão da existência de escolas. Ora, estas últimas vão ao encontro da valorizada noção de grandes projectos, com financiamentos avultados, exibidos à maneira dos velhos troféus de caça, mas que raras vezes se encontram ligados à inovação criativa.

Última das debilidades do edifício das humanidades e ciências sociais: são poucas ou nenhumas as condições que favorecem a investigação e o ensino universitário que delas deveria resultar. Por exemplo, não existem bibliotecas em construção, com colecções pensadas de forma integrada — um processo lento que não é substituível pelo acesso a bases de dados, ainda por cima truncadas e desactualizadas. Ora, a existência de uma boa biblioteca — conforme disse, há muito, Marc Bloch a propósito da história comparada — fará mais pela interdisciplinaridade do que todos os discursos programáticos a seu respeito. É aqui que será necessário uma maior concentração de esforços, para que os gastos em pessoal e na sua formação sejam devidamente rentabilizados. Por exemplo, não seria mais razoável evitar a dispersão de recursos em Lisboa, num raio de dois quilómetros, por pequenas bibliotecas de centros e universidades, e simplesmente dotar de meios a Biblioteca Nacional?

3. Com a chegada do Inverno, imagino que o edifício a que me refiro poderia ser bem diferente. A esperança que ainda tenho talvez seja resultado de trabalhar e escrever diariamente na Biblioteca Nacional, uma instituição onde, apesar de todos os cortes e da falta de meios, o acolhimento aos leitores é caloroso. Mas o que mais me determina resulta de me cruzar, no meu quotidiano, com colegas mais novos, investigadores de uma geração que trabalha em posições precárias, mas com rasgo e capacidade crítica e problematizadora. O respeito que tenho por essa nova geração, que não beneficiou das condições privilegiadas de estabilidade e segurança de emprego que usufruí desde os meus 22 anos, é imenso. Não resisto, por isso, a evocar aqui três casos que apontam para caminhos muito diferentes.

Bruno Monteiro, um jovem sociólogo do Porto que não tem 30 anos, e cujo primeiro grande livro aguarda publicação, representa bem essa nova geração de investigadores em que valeu a pena investir. Herdeiro de uma tradição de pesquisa sedimentada por várias gerações de cientistas sociais do Porto, de Madureira Pinto a Virgílio Borges Pereira, tem demonstrado nos seus trabalhos um conhecimento aprofundado, crítico e analítico, do Porto e do Vale do Ave. Utilizando este território como uma base, Monteiro, graças às condições de estabilidade que a Universidade do Porto lhe tem sabido proporcionar, tem conseguido multiplicar as suas áreas de interesse e cruzar saberes. Entre as suas actividades, os seus estudos publicados por uma pequena editora independente, Deriva, e traduções por ele coordenadas, merecem ser destacados, enquanto propostas originais em que os conhecimentos disciplinares se cruzam em função da colocação de problemas, Ricardo Jorge, A peste bubónica do Porto (2010); Ludwig Wittgenstein, Observações sobre “O Ramo Dourado” de Frazer (2011); História Social do Porto (2011); Michael Pialoux e Christian Corouge, Crónicas Peugeot (2013).

Porém, as condições, os resultados e as expectativas sugeridos pelo caso de Bruno Monteiro quase parecem excepcionais no confronto com dois outros casos. Por um lado, o de uma brilhante investigadora, doutorada há três anos, que tem agora 40 anos. Doutorou-se tarde, por ter tido sempre de trabalhar ao mesmo tempo que investigava. A estabilidade do trabalho de professora num liceu de província constituiu-se como uma prioridade, quando vieram os filhos e depois o divórcio. Neste momento, a necessidade de assistência à família leva-a a angariar outros trabalhos — como tradutora, ghostwriter e tarefeira de projectos científicos — para suplementar o seu ordenado. Seria um devaneio arriscar tudo numa bolsa. Porém, sem esta a sua disponibilidade para se dedicar à escrita, necessariamente morosa, de artigos para poder ser avaliada afigura-se como uma quimera. O seu potencial, no qual irei continuar a acreditar, está pois comprometido neste círculo vicioso do qual dificilmente conseguirá fugir. E só por hipocrisia com todos os que se confrontam com situações precárias se poderá argumentar que a necessidade aguça o engenho...

Último caso: um aluno que conheço por se ter licenciado na faculdade onde ensino, onde acabou por se doutorar com bolsa da FCT, vai interromper a sua bolsa de pós-doutoramento que lhe foi concedida também pela FCT. Concorreu à bolsa de uma prestigiada fundação de pesquisa brasileira e foi escolhido como um dos quatro investigadores em mais de uma centena de candidatos. Partirá em Janeiro. Suspenderá a bolsa, na certeza de que o seu futuro em Portugal é muito incerto. Felicitei-o, como mandam as regras, mas guardei para mim a ideia de que não irá voltar.

4. Como em qualquer edifício, são vários os que têm responsabilidades sobre o estado em que se encontra a construção. A FCT, as universidades e centros de pesquisa e, sem dúvida mais limitados, os próprios investigadores situam-se em patamares diferentes de escolhas e execução. Porém, neste Inverno que agora começa, a hecatombe vinda de cima — suscitada por uma enorme desorientação e por erradas escolhas políticas — tem consequências difíceis de admitir. Sobretudo quando se trata de sacrificar o elo mais fraco e de transformar em vítimas os investigadores de uma nova e promissora geração.  

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