O que fazer quando um filho nos diz: “Estou bem, estou na Síria”?
A guerra civil arrastou já largas centenas de jovens europeus para a Síria. Querem juntar-se aos grupos rebeldes que tentam derrubar Bashar al-Assad e criar um estado islâmico. A família de Pero não cruzou os braços para garantir que tinha o filho de volta.
Durante horas, ficou preocupada com o seu filho de 16 anos, Pero. Ele disse-lhe que ia a um encontro na Baixa e que ficava a dormir em casa de uns amigos. Mas desapareceu. Na manhã seguinte, a mãe recebia uma chamada no seu telemóvel:
— “Onde estás?”, gritou zangada, e ao mesmo tempo aliviada por ter notícias dele.
Rompeu em lágrimas com a resposta:
— “Estou na Síria.”
Na noite anterior, Pero e outras 22 pessoas, incluindo pelo menos quatro adolescentes, apanharam um voo barato para a cidade turística turca de Antalya e seguiram pela estrada até à fronteira da Síria. O grupo fazia parte de um número cada vez maior de muçulmanos europeus que querem combater a guerra civil ao lado dos extremistas, alguns com ligações à Al-Qaeda. Os responsáveis de segurança temem que alguns destes voluntários regressem radicalizados e determinados a lançar ataques na Europa.
Mas, para os membros de uma família em Frankfurt, a partida secreta do seu adolescente originou uma obsessão: desviar o seu filho ainda com cara de bebé, mas problemático, do caminho do martírio.
Pero foi o filho tardio e querido de uma família muçulmana, muito unida, que emigrou da Macedónia, um país dos Balcãs, para a Alemanha, ainda antes de ele nascer. No último ano, Pero tornara-se cada vez mais devoto e distante.
O velho Pero adorava xadrez e o sapo Cocas, e corava quando as amigas da sua tia Serce lhe apertavam as bochechas. O novo Pero frequentava uma mesquita conservadora, sussurrava orações e indignava-se por o pai beber álcool, deixando pasmada a família, que tinha uma relação muito mais descontraída com o islão.
Semana após semana, os pais de Pero mantinham-se em contacto telefónico com ele através do seu telemóvel alemão pré-pago, mas ficaram com cada vez mais receios de não voltarem a vê-lo. Mandaram-lhe, a ele e ao seu superior num campo de treino na Síria, centenas de euros em crédito para o telefone e para o Skype, para manterem o contacto. Cada chamada ou mensagem escrita enviava mais ansiedade à família em Frankfurt.
“Eles querem ir para o paraíso”, disse o pai de Pero. “Eu queria que o meu filho seguisse o caminho de Deus, que é o melhor caminho. Mas não isto.”
A família concordou em partilhar a sua história porque considera que a Alemanha está a fazer muito pouco para impedir os seus cidadãos de irem combater para a Síria e para os trazer de volta quando eles partem. Os familiares de Pero só falaram na condição de serem identificados apenas pelas alcunhas que usam entre si porque temem pela segurança do seu adolescente. Este relato baseia-se em entrevistas com membros da família, responsáveis alemães e uma figura religiosa que se encontrou com Pero, para além de vídeos da família e mensagens escritas que têm gravadas.
Para o trazer de volta, os pais de Pero tentaram chamá-lo à razão. Tentaram jogar com as suas emoções. E depois tentaram algo mais drástico.
Derrubar al-Assad
Em mesquitas ultraconservadoras de cidades por toda a Europa, a Síria tornou-se um foco de uma fúria generalizada. Os imãs fazem prédicas sobre as atrocidades cometidas pelas forças do Governo sírio e apelam aos jovens fiéis que se juntem à luta do povo para derrubar o Presidente Bashar al-Assad e criar um estado islâmico. Há imensos voos baratos para a Turquia, e os cidadãos de alguns países, incluindo a Alemanha, só precisam de mostrar o bilhete de identidade, nem sequer o passaporte, para entrar, frustrando as tentativas das autoridades de restringir os movimentos através da confiscação dos seus documentos. Há redes organizadas para fazer passar pessoas da Turquia para a Síria, e uma vez lá são encaminhadas para campos de treino. A maioria dos 23 jovens aspirantes a combatentes que fazem parte do grupo de Pero nasceram na Alemanha, mas os seus pais eram imigrantes, segundo o responsável máximo da segurança de Hesse, o estado ao qual pertence Frankfurt. Metade destes jovens têm antecedentes criminais e nenhum um emprego a tempo inteiro, disse Boris Rhein, o ministro do Interior de Hesse.
É difícil saber com rigor quantos europeus foram para a Síria, mas os responsáveis de contraterrorismo da União Europeia estimam que sejam entre 800 e 900, principalmente do Reino Unido, França, Holanda, Bélgica e Alemanha. Um pequeno número de americanos também foi combater para aquele país.
“É um problema muito complicado porque muitas destas mais de 800 pessoas que deixaram a Europa não são conhecidas da polícia. Usam documentos válidos. Usam rotas turísticas”, declarou o coordenador de contraterrorismo da UE Gilles de Kerchove, numa entrevista. “Alguns regressarão com melhor treino, com melhores relações com pessoas em todo o mundo, e mais radicais.”
“Não são milhares e milhares”, afirmou. “Mas 1% em 800 é o suficiente para montar um ataque sério.”
Donativos para a Síria
O caminho de Pero para a Síria começou há um ano, pouco tempo depois de o seu pai, Mitko, ter voltado para a zona de Frankfurt pondo fim a uma ausência de sete anos, alguns deles passados na prisão, acusado de distribuição de droga. Pai e filho passaram por algumas dificuldades para se habituarem um ao outro, especialmente no apartamento apinhado, onde Pero tinha de dormir numa cama desdobrável no canto da sala, enquanto as suas duas irmãs partilhavam um quarto. Começou a dar-se com novos amigos numa mesquita local. Primeiro, Pero insistia em dizer as orações, apesar de o islão ser mais uma herança do que um conforto diário da família. Depois, passou a ir para as ruas de Frankfurt distribuir o Corão com os amigos. Até que a conversa foi dar à guerra civil da Síria e ao desejo de criar ali um estado islâmico.
“Não fazia ideia de como lidar com a situação”, disse Mitko, um homem musculado, compacto, com barbicha. “Achei que seria suficiente garantir que não faltava dinheiro aos meus filhos.”
No dia em que partiram para a Síria, Pero e os seus companheiros juntaram-se a outras 700 pessoas para ouvir Pierre Vogel, um homem que pode ser descrito como um clérigo radical pelos responsáveis de segurança alemães e da União Europeia. Vogel é um antigo combatente de boxe de 35 anos que nasceu na Alemanha e que em 2001 se converteu ao islão. Exortou a multidão, reunida numa praça onde há lojas de luxo umas a seguir às outras, a dar dinheiro aos que vestiam uma T-shirt cor de laranja onde se lia: “Donativos para a Síria”.
“Talvez o euro que você está a doar agora seja o euro que ajudará a luta dos pobres, dos oprimidos, através dos quais a tirania será derrubada”, disse Vogel. “Que Alá derrube este tirano.”
Os pais de Pero avisaram imediatamente as autoridades sobre o paradeiro do seu filho.
“Ele não contou muito sobre a vida na Síria”, disse Mitko, olhando para as fotografias do filho que estão espalhadas na sala de estar da sua irmã.
"Sequestrem-no"
Pero disse aos pais que estava a viver numa casa cheia de outros solteiros, todos expressando-se em alemão, algures perto de um campo. Não falava do seu treino, mas a família ficou com algumas ideias sobre a sua vida. A localidade à volta tinha lojas que vendiam doener, um snack germano-turco parecido com gyros, e de vez em quando o grupo matava um borrego para o jantar. Mas Pero também se queixou de ter fome e os pais recearam que ele não recebia comida suficiente.
Outro adolescente de Frankfurt que fugiu na mesma altura disse à família que os jovens alemães esperavam juntar-se ao Jabhat-e-Nusra, um dos grupos de combatentes mais poderosos e mais bem organizados entre os rebeldes sírios, ficou a saber o pai de Pero. O Jabhat-e-Nusra aliou-se à Al-Qaeda e o Governo americano classificou-o como grupo terrorista.
Quando a família de Pero lhe telefonava durante o dia, o telemóvel estava sempre desligado — não lhe era permitido levá-lo para o treino. Estava contactável por volta das 9 da noite, normalmente através de um superior turco do campo, que tinha vivido em Frankfurt, contaram os pais.
Mitko afirmou que o superior de Pero lhe dissera que a coisa mais prestável que a família poderia fazer pelo filho era comprar uma metralhadora AK-47 ou um colete à prova de balas.
As frustrações cresciam. Mitko gritou com o filho ao telefone e disse-lhe para voltar para casa. Passaram dois dias sem uma palavra de Pero. “Agora, só fala com a mãe”, disse Mitko.
Pero disse-lhe que tinha jurado fidelidade a um grupo de combatentes pouco depois do Eid al-Adha, um dos dias mais sagrados do calendário muçulmano, que neste ano calhou em meados de Outubro. A família temia que ele estivesse prestes a desaparecer para a guerra.
Mitko marcou um encontro com um imã conservador chamado Hesham Shashaa, que ganhou fama pelos seus esforços de combate à radicalização dentro da comunidade islâmica da Alemanha.
“Como posso ajudar?”, perguntou o imã de barba grisalha, sentado com uma veste branca a uma mesa de madeira no apartamento da tia de Pero.
“O que devo fazer?”, respondeu Mitko.
Shashaa apresentou várias opções: conversem com Pero, digam-lhe que o Corão coloca as obrigações familiares em primeiro lugar e que condena a violência. Ou convençam-no de que a mãe está doente e ele precisa de vir para casa ou, pelo menos, visitá-la no lado turco da fronteira com a Síria. “Não vai ser tão simples como ‘Oh, habibi’, e caem todos nos braços uns dos outros e vão-se embora”, avisou Shashaa, usando a palavra árabe para “querido”.
Mitko e a mulher já tinham prometido a Pero uma nova vida caso ele voltasse para casa. Não o demoveram. Mitko tentou também dizer-lhe que a mãe estava doente, à beira da morte. Isso também não resultou.
Havia outra possibilidade, sugeriu Shashaa.
— “Sequestrem-no.”
Cinco dias depois de Mitko se ter encontrado com o imã, Pero concordou, pelo Skype, em encontrar-se com a mãe e a tia na Turquia, perto da fronteira. Seria uma hipótese de dar um beijo de despedida na família e receber a sua bênção antes de partir para a luta. Pediu-lhes que lhe trouxessem meias quentes, o seu casaco de pele e T-shirts, para além de penicilina e outros antibióticos.
“Talvez esta seja a nossa última hipótese”, disse a mãe de Pero, Bagica, a um jornalista numa noite, no apartamento atolhado da família.
“Ele parecia muito cansado”, comentou Bagica sobre o filho, com quem falara nessa manhã através do Skype. “Estava com uma T-shirt. E não estava sozinho no quarto.”
“Pode ser que ele não vá sozinho”, disse o pai de Pero. “Pode ser um bocado perigoso, mas não posso ficar aqui parado enquanto perco o meu filho.”
Montar a operação
Um agente da polícia turca amigo da família colocou os pais de Pero em contacto com responsáveis antiterrorismo da região fronteiriça. O pai de Pero apanhou o avião nessa noite. A mãe e a tia partiram no dia seguinte.
Foi uma viagem longa — primeiro para Istambul, depois um voo para Adana, no Sul, seguido de uma viagem poeirenta numa carrinha para Antakya, uma cidade turca a 24 quilómetros da fronteira com a Síria. Numa segunda-feira, os três tomaram o pequeno-almoço com a polícia turca antiterrorismo e disseram-lhes que estivessem prontos para deter Pero no dia seguinte.
Na manhã seguinte, a tia de Pero, Serce, mandou-lhe uma mensagem: “Onde estás?” A família tinha planeado encontrar-se com Pero no seu hotel, o Buyuk Antakya, um dos maiores da região, cujas varandas têm vista para as montanhas que circundam a cidade. As ruas de Antakya, normalmente agitadas, estavam desertas por causa do feriado de Eid. “Ele respondeu a dizer que estará cá às 3 da tarde”, disse Serce.
À medida que a hora se aproximava, seis polícias à civil posicionaram-se em carros estacionados à entrada principal e à porta das traseiras do hotel. Serce esperava no lobby. Mitko observava a partir de um dos carros.
Às 3 horas, uma mensagem escrita: “Onde estás, Mamã?... Estou a chegar.” Pero veio de autocarro. Quando desceu, estava sozinho.
O pai deu o sinal. Os agentes da polícia saíram do carro, agarraram em Pero pelos braços e levaram-no para o hotel. Ele não estava armado. Não resistiu, disse a tia.
“Quando a mãe viu o filho e o filho viu a mãe, caíram nos braços um do outro”, afirmou Serce. “Estavam a chorar.”
Mitko agarrou-se ao braço de Pero, enquanto ele abraçava a mãe. Mitko chorava também, a primeira vez que Serce se lembra de o ver chorar. “O pequeno estava um bocado chocado por ter sido capturado”, acrescentou. Até que, depois de rezar no hotel, Pero entrou no carro com a família.
Num vídeo feito por telemóvel no caminho até ao aeroporto, Pero aparece no banco de trás do lado do condutor, a olhar fixamente pela janela, com um olhar estupefacto. No banco da frente, está sentado um agente da polícia turca. Vira-se para falar a Pero. “Se tivesses ficado mais tempo lá e tivesses dado o passo seguinte, terias percebido que tinhas seguido o caminho errado”, disse o agente. “Dá graças a Alá teres saído agora.” Pero não respondeu.
“Quem tem o direito de apelar à jihad? Não é assim tão simples. Existem regras”, continua o polícia. “O que é importante é a família. Nunca os abandones como os abandonaste.”
“Eu achava que este era o caminho certo”, disse Pero.
Quando a família aterrou em Frankfurt, Pero foi detido e levado para a esquadra central da polícia, juntamente com a mãe. (O pai ficara em Istambul porque os papéis para regressar à Alemanha não estavam em ordem.) A família não quis que Pero falasse directamente com um jornalista, receando colocá-lo em perigo caso falasse abertamente das suas experiências.
O departamento policial de Frankfurt fica num edifício de seis andares, com uma fachada preto-claro. A tia, a avó e a irmã de Pero sentam-se num banco frio na entrada vazia, à espera. Passa uma hora e aparece o advogado da família. Pero não vai ser acusado de nenhum crime, disse o advogado — mas avisou que algumas fontes dos serviços secretos achavam que ele poderia estar em perigo em Frankfurt porque algumas pessoas sentiram que ele abandonou a causa e era um delator.
Pero e a mãe aparecem no lobby. É a primeira vez em várias semanas que vê a irmã ou a avó. Dá-lhes longos abraços. Então a mãe desata num pranto. Pero abraça-a, envolve-a totalmente nos seus braços, beija-a na testa.
Saem porta fora e vão para casa.
Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post