Satélite Gaia já vai a caminho do espaço
Aparelho vai fazer o catálogo de mil milhões de estrelas da Via Láctea numa missão de cinco anos, com a participação de cientistas portugueses.
Durante os próximos cinco anos, o aparelho irá medir a distância das estrelas em relação à Terra, a sua posição no espaço e o seu movimento com uma precisão sem precedentes. Este novo catálogo, de mil milhões de estrelas da Via Láctea – apena 1% de todas as estrelas que existirão na nossa galáxia – irá permitir estudar a história da Via Láctea, o nascimento das estrelas e a matéria escura.
O Gaia tem participação de uma equipa portuguesa, coordenada pelo astrofísico André Moitinho de Almeida, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.
O aparelho vai demorar cerca de um mês até atingir a sua posição. O satélite vai ficar num ponto fixo em relação à Terra, que fica a 1,5 milhões de quilómetros de distância entre o nosso planeta e a órbita de Marte. Durante a meia década em que vai trabalhar, irá medir cerca de 70 vezes a posição de cada uma das mil milhões de estrelas. Em 2021, prevê-se a publicação do catálogo completo das estrelas, que será de acesso livre e terá um sistema de pesquisa e visualização que está a ser desenvolvido pela equipa portuguesa.
Há quase duas décadas que o satélite de duas toneladas está a ser concebido, tendo um custo de 740 milhões de euros. Quando chegar ao local planeado pela ESA, vai começar a fazer rotações de seis em seis horas para analisar a galáxia em todas as direcções e iniciar o seu trabalho de astrometria, a disciplina da astronomia que mede a posição e o movimento dos astros.
As duas lentes do aparelho só vão conseguir detectar a luminosidade dos astros até um certo ponto. É por isso que o catálogo só incluirá cerca de 1% dos sóis da Via Láctea; as estrelas que estão muito longe ou que têm uma luminosidade muito baixa não entrarão no catálogo. Mesmo assim, deverá obter um mapa até aos confins da galáxia, com uma precisão sem precedentes. “Estas medições vão servir para calibrar as distâncias das outras galáxias e do Universo. Tudo vai estar dependente das observações do Gaia”, disse André Moitinho de Almeida ao PÚBLICO. O tamanho e a idade do Universo podem ter de ser actualizados.
O Gaia vai orbitar à volta do Sol. O aparelho pode fazer uma medição de cada estrela em locais opostos durante essa órbita. Assim, vai parecer que uma estrela medida se está a mover – tal e qual como quando pomos um dedo à frente da cara e olhamos para o dedo primeiro com o olho direito e depois com o olho esquerdo. Usando a trigonometria e tendo em conta a diferença de posição de cada estrela, que é considerada em relação a um fundo estático de estrelas muito longínquas, situadas noutras galáxias, que aparentemente não se mexem, é possível definir a distância de cada estrela com apenas 1% de erro graças à potente câmara digital do Gaia.
Via Láctea canibal
As medições repetidas de cada estrela ao longo dos cinco anos vão permitir detectar o movimento destes astros na galáxia. O espectrómetro que o Gaia leva consigo também ajudará a observar a luminosidade das estrelas, em alguns casos a sua composição, e o pó estelar que existe a permear o espaço. “O Gaia vai permitir mapear a distribuição da matéria da galáxia”, explica o astrónomo, que é especialista no estudo da Via Láctea. Isto pode ajudar a perceber qual a razão a nossa galáxia tem a forma que tem.
“Vai ajudar a compreender o que é a matéria escura”, acrescenta, referindo-se a um dos mistérios do Universo. Há vários fenómenos que indicam a sua existência desta matéria, que aparentemente não interage com a luz, mas ajuda a explicar a estrutura das galáxias. A matéria que conhecemos e vemos, os átomos ou os fotões, constituem cerca de 4% da matéria do Universo. A matéria escura constituirá cerca de 25% (o resto será composto pela energia escura, algo também difícil de encontrar).
“Quando tentamos procurar a matéria escura aqui perto da Terra, nunca a encontramos”, diz o cientista. O mapa da Via Láctea que será produzido pelo Gaia pode dar mais pistas sobre este elemento tão esquivo do Universo.
Os resultados do satélite vão permitir olhar para a história da Via Láctea. Ao detectar-se o movimento das estrelas, é possível adivinhar o seu movimento no passado. Quando se juntarem estes dados à informação sobre a composição das estrelas, os cientistas pensam ser possível observar o canibalismo da Via Láctea. “Pensa-se que há uma hierarquia nas galáxias. As grandes começam a canibalizar as outras galáxias”, explica André Moitinho de Almeida.
De acordo com os cenários para a formação do Universo e das galáxias, deveria haver muitas mais galáxias-satélite, à volta da Via Láctea. Uma das possibilidades é a Via Láctea já ter engolido parte delas. “Temos uma galáxia que está a girar e que vai capturando outra galáxia mais pequena, que se desfaz mas vai deixando um rasto. [Por isso] haverá uma corrente de estrelas com um movimento organizado”, diz o cientista, comparando com o que acontece quando o leite se dissolve numa caneca de chocolate quente. São estes rastos de estrelas ainda com um movimento próprio e com uma composição diferente das estrelas originais da Via Láctea que se espera detectar com a informação obtida pelo Gaia.
André Moitinho de Almeida também está interessado na formação estelar. Sabe-se que uma estrela não se forma sozinha. Está dentro de um aglomerado de estrelas, que por sua vez está dentro de complexos de formação estelar ao longo dos braços espirais da galáxia. “Ainda não se sabe se estes braços vivem durante muito tempo ou se estão sempre a aparecer e a desaparecer”, diz o astrónomo. Mas para cada tipo de cenário, prevê-se um movimento e distribuição das estrelas. “O Gaia pode permitir distinguir cenários correctos de incorrectos.”
Quatrocentos investigadores
Mas a produção de ciência a partir dos resultados do Gaia ainda vai demorar tempo. Para já, a ESA está preocupada na forma como os dados vão poder ser analisados. Ao longo dos cinco anos, o satélite vai produzir várias centenas de terabytes de informação, o equivalente a informação que pode ficar guardada em 30 mil CD-ROM.
Por isso, a equipa de André Moitinho de Almeida tem de preparar um sistema de visualização para que qualquer cientista possa ver o catálogo final. A sua equipa faz parte de um grupo maior de equipas portugueses que contribuíram para o Gaia, e onde se inclui ainda o Centro de Astronomia da Universidade de Lisboa, a Universidade Nova de Lisboa, a Universidade de Coimbra e a Universidade do Porto. O grupo português integra um consórcio internacional de 400 elementos.
Para o astrofísico português, que está no projecto desde 2006, esta é “a missão de uma vida”. O segundo acto, depois da concepção e construção, com a sonda a ir finalmente para o espaço, está apenas a começar.