O jantar de Mandela e Xanana que entrou na História
O encontro não transformou a cabeça de Xanana, nem fez a Indonésia virar. Mas isolou Jacarta e deu força aos portugueses na mesa de negociações
Estávamos em Junho de 1997 e as negociações entre os ministros dos Negócios Estrangeiros de Portugal e da Indonésia – com relações cortadas desde 1975 – tinham começado há apenas um mês numa atmosfera que os diplomatas definiriam como “pouco auspiciosa”, mas que, em linguagem corrente, se resumia a puro desprezo. A Indonésia olhava para Xanana Gusmão como “terrorista”, Portugal como um herói.
Um mês depois, Mandela, já Presidente da África do Sul, faz uma visita oficial a Jacarta. Queria agradecer ao presidente Suharto o apoio que este lhe tinha dado durante a luta contra o apartheid. “Mas a vertente emocional de Timor-Leste intrometeu-se quando Mandela fez uma declaração pública a pedir a libertação de Xanana”, conta nas suas memórias Jamsheed Marker, o diplomata da ONU que mediou as históricas negociações que, em 1999, resultaram na independência de Timor-Leste.
A maior surpresa, no entanto, veio depois. “Mandela pediu e insistiu em reunir-se com Xanana”, conta Marker. “Há um relatório que indica que Suharto começou por recusar o pedido de Mandela para se reunir com Xanana com a seguinte pergunta: ‘Porque quer falar com ele? Não passa de um criminoso comum.’ Quando Mandela respondeu que ‘foi precisamente isso que disseram de mim durante 25 anos’ Suharto pediu de imediato que trouxessem Xanana da prisão para um jantar particular com Mandela na residência dos convidados do Estado”.
O que está na fronteira entre a lenda e a realidade não é o jantar. Sobre esse não há dúvidas e sabe-se hoje, de resto, que ajudou – e não foi pouco – a mudar a História. Pelo menos a isolar ainda mais a Indonésia e a dar força a Portugal, em plano arranque das negociações. O mito é sobre a troca de palavras. “Não posso atestar da veracidade [deste diálogo], mas tem um ar autêntico e, a ser verdade, tem toques de lenda que dizem muito acerca do calibre de ambos os presidentes”, escreve Marker em Timor-Leste - Relato das Negociações para a Independência (edição do Instituto Diplomático).
Quando se soube do jantar, houve festa em Lisboa e em Nova Iorque. “Foi uma bomba, mas uma bomba boa”, lembrou esta sexta-feira ao PÚBLICO António Monteiro, na altura embaixador de Portugal junto das Nações Unidas. “Ao dizer a Suharto: ‘O Xanana é um combatente pela paz como eu’, Mandela dá uma caução moral ao Xanana que retirou argumentos e força aos indonésios.”
Segundo Marker, durante o jantar, Mandela falou a Xanana sobre as suas “dúvidas em relação à eficácia da luta armada” (que “apenas dava à Indonésia a ‘oportunidade de matar mais gente’”) e “tentou convencer Xanana de que era preciso conseguir uma solução de compromisso”. Xanana “não se comprometeu, mas garantiu que iria pensar nisso”, escreve o diplomata paquistanês.
No fim desse ano, o então secretário-geral da ONU, Kofi Annan, fez uma proposta ao Presidente sul-africano: “Sugerimos a Mandela que ele propusesse a Suharto que o governo indonésio iniciasse negociações directamente com Xanana em segredo.” Discutem-se cenários vários, um dos quais era Xanana exilar-se na África do Sul.
Enquanto a diplomacia dá passos, a cabeça de Xanana não pára. Quando Jamsheed Marker o visita de novo na famosa prisão de Cipinang, na Indonésia, o líder da resistência timorense já está mudado. Xanana começa por lhe dizer que “reconsiderara a sua posição anterior, tal como fora transmitida a Mandela, e estava preparado para aceitar o exílio na África do Sul para poder organizar a sua campanha política”, conta Marker.
Perante isso, o enviado da ONU diz-lhe que ele só tem duas opções: entrar em negociações através da ONU ou continuar a luta armada. “Mandela disse-me a mesma coisa”, responde o líder timorense. Xanana pergunta então se seria possível uma “solução provisória”, mas a Indonésia só queria discutir “soluções permanentes”. Esse era justamente um dos nós górdios. “Depois de muito ponderar, Xanana disse que abandonara a ‘abordagem militar’, mas que precisava de tempo para ‘convencer as pessoas’.” Seguiram-se dois anos imparáveis, cheios de momentos inesquecíveis. Mas este primeiro encontro foi especial. O embaixador Monteiro resume: "Foi extraordinário. Mandela foi um grande empurrão para Timor. Foi uma ajuda enorme."