Nos dias que correm parecemos antes máquinas. Só nos permitem ser gente quando regressamos ao chamado lazer. Os amigos descontraem-nos, a família acolhe-nos. De outra forma, seríamos total e unicamente máquinas de produzir coisas.
Acéfalos. Mestres no domínio de todas as técnicas, cepos no que toca ao pensamento. Detestamos leituras longas, adoramos tudo o que envolva experiências do momento. Queremos tudo instantaneamente, como o Ovomaltine a espalhar-se no leite. Tudo o que exija reflexão aborrece. E, sem darmos conta, estamos crassamente errados.
Gonçalo M. Tavares fala-nos, em "Atlas do Corpo e da Imaginação", do pensamento enquanto acção. Hoje valoriza-se a acção prática e rápida, o trabalho expresso em resultados. Pensar é perder tempo com inutilidades. E o mesmo serve para as emoções.
Por exemplo, a gargalhada em contexto profissional é mal vista e quase intolerada. Em público, quem está sozinho não pode atirar uma gargalhada, sob pena de ser olhado de soslaio e imediatamente receber um esgar que grita baixinho “agarrem já este, que enlouqueceu”. O sorriso é o limiar da sanidade nos dias que correm. Como se o trabalho tivesse de ser obrigatoriamente um frete. E eu, que como outros felizes privilegiados, gosto tanto do que faço. "Fuck me, right"?
Como forma de nos tornar sérios e espicaçar-nos a caminho da maravilhosa produtividade assente em pura numerologia, somos enxovalhados com imagens de profissionais extraordinários como exemplo a seguir, sem nunca lhes conhecermos as fragilidades. Como sabemos tão bem das nossas fraquezas, o preço a pagar é a extrema insegurança que cresce neste peito. “Terei decidido bem?”, inquirimos a nossa pobre consciência, que luta todos os dias a caminho da perfeição.
Damos demasiada atenção às tecnologias e esquecemo-nos de ser humanos. Cantam-nos os Placebo, em “Too Many Friends” que “tudo o que as pessoas fazem nos dias que correm é olhar para um telefone. Temos demasiados amigos, demasiada gente, e não conseguimos dar assistência a todos eles”. Os amigos de ontem eram pessoas de carne e osso. Hoje são números e caras enfiados num layout azul e branco. Porque não há tempo para mais.
Um dia, lá longe (espera-se), estaremos velhinhos deitados numa cama. Dependendo do que faremos hoje, aquilo que nos ocorrerá será, na pior das hipóteses, um “raios me partam por me ter esfalfado a bulir que nem um louco e agora aqui jazo, incapaz de trocar as voltas ao relógio e à idade”. Há, porém, uma hipótese muito melhor: “doem-me os ossos e dói-me a vida, mas nada paga a alegria de ter tido uns dias repletos, do primeiro ao último. Bendita vida, repetiria tudo de novo”.
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