“A austeridade na Europa é um verdadeiro pacto suicida”
Para Mark Blyth, autor de Austeridade – A História de Uma Ideia Perigosa, o argumento de que as políticas restritivas poupam os mais pobres ignora o facto de serem eles quem mais depende do Estado.
Portugal voltou a crescer nos dois últimos trimestres e as taxas de juro da dívida estão mais baixas. Vê algum sinal de que a estratégia da troika está a resultar?
A Europa está num momento de viragem, por causa de Portugal! A economia estabilizou no terceiro trimestre, mas no trimestre seguinte pode cair outra vez… Todas as taxas de juro da dívida desceram. O maior problema é que não há nada a fazer com a dívida, porque ela continua a aumentar, a aumentar, a aumentar desde 2010. E desde 2011, as taxas de juro estão em queda. Porquê? O senhor [Jean-Claude] Trichet [ex-presidente do BCE] saiu de cena e o senhor [Mario] Draghi entrou em acção. Veio responder aos erros de Trichet no seu último ano de mandato. Então, porque é que as taxas de juro desceram? Porque agora temos um banco central que actua como um banco central.
As exportações estão a crescer, a ganhar quota de mercado. Não é um sinal de ajustamento?
O ciclo das exportações em alta e as importações em queda acontece porque Portugal está a importar menos, porque os salários estão a diminuir. Por definição, quando se importa menos, as exportações crescem mais. Vamos assumir que esse não era o caso: que as importações se mantinham [ao mesmo nível] e as exportações cresciam. Dir-se-ia que a resposta para zona euro é que todos os países precisam de exportar mais. Mas para onde? Para que alguém tenha um excedente de exportações, isso corresponde a um défice comercial [de outra geografia]. Consegue toda a economia global, no seu conjunto, ter um excedente? Isto é impossível de acontecer na zona euro. Como um todo, não consegue ter um excedente, mesmo se os alemães ditam as regras, estabelecendo um limite de 6% de excedente comercial e um défice orçamental de 3%.
Foi precisamente para estimular a economia que a Comissão Europeia fez a recomendação à Alemanha.
Exactamente. Se os países não puderem ter défices [mais altos], enquanto alguns conseguem obter excedentes, o único resultado possível é a destruição da equidade entre cidadãos e aumento do desemprego. Não é por haver uma inversão [pontual da conjuntura económica] que as coisas melhoram. Se um país tem um excedente permanente, algum país está condenado a ter um défice permanente. E mais desemprego permanente. Não acredito que a Comissão Europeia queira que isso aconteça.
E é possível que isso resulte? Se se colocar na pele de um alemão — o desemprego está baixo, as coisas aparentam estar a correr bem —, como convencer um alemão a mudar este modelo?
Se viver em Berlim, vou achar que as coisas estão bem, absolutamente… Os alemães pensam que está a resultar. Como realizaram reformas do mercado de trabalho, tomaram as medidas que melhor entenderam ser necessárias, por causa das reformas do mercado de trabalho, aumentaram as desigualdades na distribuição de rendimento. Há mais pessoas a trabalhar, mas muitos estão a fazê-lo recebendo salários mais baixos. Se olharmos para a despesa da Alemanha no sector da Saúde, não estão de todo a cortar no Estado social, estão a apoiar as famílias… Todos os países vão conseguir ter um excedente? Isso não funciona.
O modelo alemão é uma má resposta à crise?
Para a Alemanha, tem de funcionar. É o mesmo com a Suíça: nem todos podemos ser suíços. A Suíça funciona, porque eles ficam com o dinheiro que todos querem esconder. Se todos tentarmos ser a Suíça, claramente não vai resultar. Um país pode [querer] ser o próximo campeão das exportações, mas só pode haver um. É o mesmo argumento quando dizem que se tem de ser mais competitivo. Não há dúvida de que dez anos de crédito fácil vindos de excedentes do Norte para os bancos do Sul levaram à bolha imobiliária em Espanha. O maior problema de Portugal dos últimos 20 anos é a demografia e crescimento muito baixo. E agora têm um problema e precisam de uma resposta: o país precisa de um novo modelo económico. Mas não é Bruxelas quem deve decidir, é algo que cabe aos portugueses decidir. Os políticos europeus usam a palavra “competitividade” da mesma forma que os americanos falam em “liberdade”. Mas o que é que a competitividade significa, na verdade? Porque se a competitividade significa simplesmente cortar nos salários, as pessoas que estão a fazer sacrifícios agora vão ficar mais pobres e os seus filhos também. “Mas não se preocupem, salvámos os bancos.”
A Irlanda é tida como um país que está numa posição melhor do que Portugal. Qual é a diferença — ou ela não existe?
Depois do resgate, voltaram a aumentar as desigualdades na distribuição da riqueza, é um país com uma taxa de desemprego de 12%, o crescimento é fraco… Se é o regresso aos mercados que avalia o êxito do resgate, qualquer um consegue voltar aos mercados, porque o BCE está lá como garantia. Todos estes resultados, por causa da recessão, por causa de nada se fazer, aumentaram a dimensão da crise, é o que vemos acontecer por toda a Europa. “Alguém tem de pagar por isto.” Mas vamos pensar: quem tem mais dinheiro nestes bancos? As pessoas que investiram em activos, em investimentos imobiliários, em sistemas privados de pensões. Conseguiram proteger os seus investimentos com os resgates. E agora dizem: “Ah, temos de ser austeros.” O que é que isso significa mesmo? Que quem vai pagar são as próximas gerações.
O Governo português usa esse argumento ao contrário, dizendo que não podemos hipotecar o futuro das próximas gerações. E esgrime o mesmo argumento em relação às novas regras do mercado de trabalho.
As pessoas vão pagar por isso. Portugal é uma pequena economia, com altos níveis de pobreza, baixos níveis de qualificação, baixa produtividade, que tenta pagar a dívida para nada.
Continuamos a ter um problema com os bancos na Europa. Que política devemos aplicar?
Temos uma economia de cerca de 15 biliões [milhões de milhões] de euros. Temos um sector bancário que comprou activos, incluindo títulos espanhóis, dívida pública grega e outro tipo de activos, de cerca de 45 biliões de euros. Quem é a maior economia? A Alemanha, com mais de quatro biliões. A solução passa pela mutualização e pelo perdão das dívidas. Não nos podemos esquecer que, em 1953, a economia alemã estava de rastos e com o desemprego em alta, e o milagre económico alemão veio com o perdão da dívida em 1953 na Conferência de Londres. É o que se faz quando as economias têm uma dívida, mas os alemães esqueceram-se disso. Acha honestamente que os gregos conseguem pagar a sua dívida? [O caso de] Portugal é exactamente a mesma coisa. Ter um banco na Europa significa lidar com os problemas dos bancos. Pode haver uma mutualização, euro-obrigações, mas para isso é preciso uma liderança. Antes das eleições na Alemanha, qual era a expectativa na Europa? Toda a gente sabia que a estratégia estava bloqueada e que isso tinha a ver com a reeleição de Angela Merkel e que haveria uma mudança de política. Alguém viu a mudança de política [no acordo da “grande coligação” entre a CDU e o SPD]?
Não se vê uma mudança na forma como os líderes europeus olham para a austeridade. Quando é que poderemos esperar uma mudança?
As coisas mudam, mesmo que estejamos mortos. Mas espero que isso aconteça antes de morrermos… As pessoas mais velhas estão a ficar mais pobres, enquanto se corta no Estado social e se fazem reformas no mercado de trabalho para empregos que não existem.
Não vê um projecto para Portugal?
Não vejo agora, mas é difícil ter um projecto económico quando não se tem uma moeda própria. Sem autonomia monetária não se tem uma verdadeira autonomia orçamental.
A troika está a chegar. Se o Governo português decidisse dizer que não a mais austeridade e a troika insistisse, o que é que se fazia — sair do euro?
Não é preciso fazer nada assim tão drástico, porque, provavelmente, acabariam com uma inflação alta e uma moeda muito desvalorizada. E Portugal ainda não exporta o suficiente. Uma coisa muito mais simples pode ser feita, que é não aplicar mais austeridade. Vejam o que aconteceu no segundo trimestre deste ano — a economia cresceu 0,7%. A Comissão Europeia ficou radiante com o resultado, mas por que é que isto aconteceu? Porque não aplicaram a austeridade. E não há problema com os mercados. A dívida tem estado a subir desde 2010 e as taxas de juro têm estado a descer desde 2011, porque o problema era o de saber se o banco central dava uma garantia e ela foi dada. A austeridade agora é não só inútil como contraproducente. Por isso, parem de a aplicar. Não estou a sugerir uma grande injecção de capital, que não vai acontecer, nem grandes investimentos em infra-estruturas, que já têm muito razoáveis. O que estou a dizer é: parem de se magoar a vós próprios, só isso.
E porque é que a troika haveria de nos querer magoar, vê alguma razão?
Em parte, por uma questão de reputação. É sempre muito difícil dizer: “Parece que nos enganámos.” O que eu esperava neste último ano era que houvesse um recuo progressivo em que toda a gente fingisse que nunca nada disto tinha acontecido, mas, afinal, a Alemanha insiste em que toda a gente deve ser como eles e tornar-se mais competitivo. Mas isso não vai resultar. Posso vir cá daqui a um ano e teremos exactamente a mesma conversa.
O Governo diz que as medidas que tem tomado poupam as pessoas com mais dificuldades. Julga que isso pode ser importante?
Podemos ser mais ou menos generosos com algumas pessoas, mas a verdade é que se está sempre a cortar alguém. Pode-se escolher cortar no pescoço ou apenas na cintura, mas é sempre um corte. E vejam-se as pessoas com rendimentos verdadeiramente elevados. Quanto é que dependem dos serviços públicos? Nada. A escola dos filhos pode ser privada, os hospitais também. Portanto, se se cortar, cortar, cortar nos serviços públicos, quem é afectado é quem tem rendimentos mais baixos. Esse argumento de que se está a poupar os pobres ignora o facto de serem eles quem mais depende do funcionamento do Estado.
Um dos argumentos usados pelos defensores da austeridade é o de que pode afectar o país no curto prazo, mas dá-lhe mais competitividade no longo prazo...
Mas a austeridade tem enormes efeitos negativos no longo prazo. Um cenário em que se entra em recessão, se aplica austeridade para começar tudo do zero e a economia depois arranca muito poucas vezes acontece. E, quando acontece, tem a ver com outras razões, como uma grande desvalorização da divisa ou com os parceiros comerciais estarem a crescer muito rapidamente. Mesmo na melhor versão da história, aquilo que é ignorado é o facto de as consequências sociais dessa crise profunda se prolongarem por um grande período de tempo. Por exemplo, depois da crise asiática, ocorreu uma escalada da contaminação pelo vírus VIH. Porquê? Porque muitas pessoas foram forçadas a prostituir-se. Os preços diminuíram, a segurança diminuiu e o contágio aumentou. E o efeito do desemprego de longo prazo nas famílias? Passa a haver mais divórcios que, por sua vez, conduzem a maior pobreza infantil. São tudo consequências que ainda se sentem vários anos depois da crise.
E o efeito de uma melhoria das expectativas, se as finanças públicas estiverem melhor?
O problema é que, quando se opta por fazer encolher o produto interno bruto (PIB), a mesma quantidade de dívida acaba por ter um peso superior na economia. Os modelos económicos dizem que isso não acontece, porque as pessoas mudaram as suas expectativas e, como agora estão à espera de impostos mais baixos daqui a dez anos, vão ao Ikea e compram um sofá. Isso pode funcionar nos modelos, mas não funciona no mundo real. Por isso, o que se faz quando se está a encolher a economia é a gerar um crescimento negativo da produtividade. Isso é algo realmente muito perigoso, porque se começa a perder as pessoas qualificadas através da emigração, perdendo também a futura base fiscal.
Podemos estar perante um cenário de estagnação prolongada?
Pode ser, mas não tem de ser. Olhe para as diferenças de crescimento dos EUA e da Europa nas últimas décadas. Elas acontecem por causa de políticas estúpidas na Europa, como as regras do Tratado de Maastricht. Parem com as políticas estúpidas e um cenário de estagnação prolongada já não acontece.
É difícil de acreditar que todos os líderes europeus optem por políticas estúpidas. São todos estúpidos?
Não são, mas investiram demasiado nisto. Não sei se acreditam realmente naquilo que dizem, mas todas as pessoas em Bruxelas, com excelentes salários, querem acreditar neste projecto. E adoram juntar-se e falar da próxima ronda de harmonização. Se faz sentido ou não, a verdade é que os excelentes empregos de uns quantos milhares de pessoas dependem disso e eles não vão sair sem dar luta. Em Bruxelas, assinala-se agora que se está a regressar ao crescimento... A Comissão tem anunciado o virar da esquina na crise praticamente em todos os trimestres. Mas qual foi o crescimento no último trimestre? Apenas 0,1%. Se isso é virar a esquina, então é virar a esquina contra um muro de tijolos.
Tem mais esperança em Mario Draghi e no BCE do que em Bruxelas?
Sim, muito mais. Mario Draghi percebe a situação e o BCE, como um todo, está a começar a perceber que a função de um banco central não é combater uma inflação que morreu em 1923. Não é contra a memória da hiperinflação alemã que temos de lutar. Na Europa, o perigo agora é a deflação. E a função de um banco central tem de ser a de ser credor de último recurso. Tem de fazer injecções de liquidez, salvar aquilo que tem de ser salvo e fechar aquilo que se pode fechar.
E o BCE pode funcionar contra as ideias do Bundesbank durante muito tempo?
Sim, tem de ser. De outro modo, a Europa fracassa. E Draghi percebe isso. Tem de haver uma mudança cultural, se não constitucional, fundamental no BCE.
O que está a ser feito não chega?
Não. Agora fala-se de taxas de juro dos depósitos negativas, para os bancos tirarem o dinheiro do BCE e emprestarem às famílias e às empresas. Mas a razão pela qual os bancos não emprestam é porque não há procura. E por isso é que é preciso que o BCE mude. Quando os mercados voltarem a duvidar da primeira promessa que foi feita por Draghi, já não vai ser possível voltar atrás. Não se pode dizer duas vezes: “Farei o que for preciso.” Ou se faz tudo o que for preciso, ou não. Draghi fez essa proposta, comprou bastante tempo, mas a situação ainda não mudou.
Portugal deve tentar uma reestruturação da sua dívida?
Claramente que sim, basicamente porque não vai conseguir pagá-la. Neste tema, têm-se colocado em primeiro plano questões de moral. “Quem deve, tem de pagar”, é o que se diz. Mas, de um ponto de vista económico, se há muito mais pessoas prejudicadas do que beneficiadas pelo facto de um Estado tentar pagar as suas dívidas, que tipo de resultado global em termos de bem-estar é que vamos ter? Uma atitude moralista muitas vezes não tem bons resultados económicos. Mas a moral é muito apelativa. Todas a gente gosta da ideia de que se tem de pagar as dívidas, desde que não seja a própria dívida.
Mas houve casos em que a austeridade funcionou...
É verdade. Mas aquilo a que chamamos austeridade actualmente na Europa o que é verdadeiramente é um pacto suicida entre todos. A austeridade na base é fazer consolidação orçamental e isso, por si só, não é negativo. Mas é preciso fazê-lo quando se está a crescer. E todos os casos de sucesso da austeridade que existem – Dinamarca, Austrália, Canadá, etc. – mostram isso. No Canadá, por exemplo, no final dos anos 1970. Decidiram cortar no orçamento com várias medidas de austeridade. Mas ao mesmo tempo o que é que fizeram? Desvalorizaram a divisa em 40%. Quase todas as exportações do Canadá vão para os Estados Unidos e, no início dos anos 1980, a economia norte-americana dispara e o dólar ainda se aprecia. As exportações do Canadá claro que cresceram imenso e eles usaram esse dinheiro para pagar dívida. Na Europa, os países não têm a sua própria divisa e exportam uns aos outros. É muito difícil exportar para quem também está a querer poupar. Esta austeridade na Europa é um verdadeiro pacto suicida.