Durão Barroso devia ter-se demitido da Comissão Europeia
O representante português em Bruxelas ficará na história como alguém que, não exercendo os seus poderes, não denunciou a gravíssima situação a que se chegou, tirando as respectivas consequências políticas.
Ninguém poderá afirmar que as políticas que têm sido impostas contribuem para o bem-estar dos povos europeus. Assim, o presidente da Comissão Europeia deveria ter denunciado estas políticas, já que o artigo 17 estipula que “a Comissão vela pela aplicação dos tratados”. Para já não falar do directório franco-alemão criado durante o mandato do Presidente Sarkozy, que passou a ditar as políticas europeias, sem que o presidente da Comissão esboçasse qualquer protesto, como lhe competia. Por isso cremos que, não sentindo força para se opor ao directório, Durão Barroso deveria ter-se demitido. Esse teria sido o acto mais nobre da sua já longa carreira política, e, devidamente fundamentado, poderia ter mudado o rumo dos acontecimentos na União Europeia e evitado o descalabro a que se chegou, com o adiamento sucessivo das soluções necessárias para debelar a crise.
Vejamos um pouco do que se passou nos últimos dez anos nas instituições europeias, em termos de nomeações para os seus principais cargos e correspondentes actuações dos seus responsáveis, assim como na França e na Alemanha.
Durão Barroso é nomeado presidente da Comissão Europeia em 2004 e Angela Merkel eleita chanceler alemã em 2005. Nicolas Sarkozy, por seu lado, assume a Presidência da França em 2007. Algum tempo antes, em finais de 2002, sobrevém uma grave crise euro-americana devido aos preparativos para uma segunda invasão do Iraque pela Administração Bush filho, a que se opõem a maior parte dos países que compõem o Conselho de Segurança das Nações Unidas, de modo permanente ou rotativo, único órgão, à luz do direito internacional, com poder para decidir da paz e da guerra. Na Europa, essa oposição é encabeçada pelo Presidente francês Jacques Chirac, que terminará o seu mandato em 2007, e por Gerhard Schröder, chanceler alemão, que cessará funções em 2005. Os americanos invadem o Iraque em 19 de Março de 2003, no meio de enormes protestos na maior parte dos países europeus e nos próprios Estados Unidos da América. Dias antes, em 16 de Março, Durão Barroso, então primeiro-ministro de Portugal, é o anfitrião nos Açores de uma cimeira que acolhe os três maiores defensores daquela operação militar, George W. Bush, Tony Blair e José Maria Aznar. Cerca de um ano depois, Durão Barroso é escolhido pelos outros chefes de Estado e de governo europeus para presidente da Comissão Europeia e demite-se de chefe do Governo português.
O seu primeiro mandato é exercido sem grandes sobressaltos, à parte a entrada dos novos países do Leste europeu e do Mediterrâneo oriental, cujas adesões há muito tinham sido preparadas pela anterior Comissão. Mas no último ano, 2009, está-se já em plena crise financeira, que se tornará numa das maiores que o sistema capitalista sofreu até à data, atingindo todos os sectores da actividade económica e o comércio internacional, provocando níveis de desemprego semelhantes aos da Grande Depressão de 1930, tanto na Europa como nos Estados Unidos.
A Comissão Europeia, como lhe compete, prepara uma campanha de investimentos a nível europeu e pede aos Estados-membros para iniciarem políticas de estímulo à actividade económica, de modo a estancarem o desemprego que se afigura incontrolável. Algum tempo depois do início do segundo mandato de Durão Barroso na presidência da CE, para a qual tinha sido de novo nomeado, são divulgadas orientações do Banco Central Europeu para que os Estados-membros refreiem os incentivos financeiros à economia e se preocupem de novo com o controlo dos défices e das dívidas públicas.
Tinham entretanto estalado em vários países crises financeiras oriundas dos sectores bancários, como na Islândia, na Irlanda, em Portugal e, embora com menos gravidade, em Espanha e na Alemanha, nestes últimos especialmente nos sectores da banca regional, que financia a actividade económica fora dos grandes centros, mas ainda assim com capitais públicos. Na Alemanha, o problema é resolvido a nível nacional, mas em Espanha o Estado central tem de ser apoiado pelas instituições europeias na injecção de liquidez nesses bancos regionais.
De Maio de 2010 a Maio de 2011 há entretanto uma intervenção das três instituições que constituem a troika na Grécia, na Irlanda e em Portugal, com resgates de quantias diferentes, destinados a evitar a insolvência dos respectivos países, impondo medidas de austeridade extremamente severas, que reduzem drasticamente a actividade económica e provocam centenas de milhares de desempregados. Em Espanha, o Governo central recusa essa intervenção.
No sistema rotativo das presidências da União Europeia, cabe à França assumir essa função a partir de Julho de 2008, pouco tempo antes de estalar o conflito entre a Geórgia e a Rússia, no qual o Presidente Nicolas Sarkozy pretende apresentar-se como o fautor da paz, ganhando assim notoriedade a nível europeu e internacional. É a partir dessa altura que se torna efectiva a acção do directório franco-alemão, apresentando pretensas soluções para a crise nas dezenas de reuniões realizadas com os mais altos representantes dos Estados-membros, em conselhos europeus e nas reuniões do Ecofin, ultrapassando a Comissão Europeia, a quem competia liderar o processo, tendo em conta o interesse comunitário e não apenas o de um ou outro país.
Era nesse momento que o presidente Durão Barroso se deveria ter afirmado, não só para a que a política da União não fosse comandada por um ou dois Estados-membros, mas também para evitar a devastação económica e social provocada pelas políticas da troika, que começaram a ser aplicadas na Grécia e depois na Irlanda e em Portugal.
Assim não aconteceu e por isso o representante português em Bruxelas ficará na história como alguém que, não exercendo os seus poderes, não denunciou a gravíssima situação a que se chegou, tirando as respectivas consequências políticas. Há momentos na vida em que os homens são medidos pelas atitudes desprendidas que tomam. Durão Barroso não soube corresponder ao que os acontecimentos lhe pediam.
Investigador em Relações Internacionais, antigo funcionário da Comissão Europeia