Reforma do centralismo?

Reformam o Estado para ser, mais ainda, centralizado? Para continuar a ser um dos mais centralizados da Europa?

Há, mesmo assim, alguma coisa aproveitável. Num ponto, o Governo fez bem. O “guião” não está fechado, convida ao diálogo e à concertação. Pode ser que a transfiguração do “guião” aconteça, ainda que os convites ao consenso estejam um pouco gastos e batidos, infelizmente.

E há a natural e positiva adopção de algumas ideias reformistas que são do domínio público. Por exemplo, e seja-me permitido dizê-lo, o “guião” tem algumas coincidências com ideias, não todas, que defendo no livro Sobrepeso do Estado, de 2005 e 2013.

Contudo, o “guião” decepciona.

Há no “guião” umas vulgaridades, uns descabidos, umas desnecessidades, que muitos já apontaram. Aí, o “guião” poderia ter sido encurtado sem que se perdesse nada, muito menos o essencial que nem sempre aparece ou transparece.

Há no “guião” uma mistura de reformismo com puras medidas conjunturais. Aí, o “guião” enfraquece as políticas estruturais ao pô-las no mesmo pé das outras. E há uma indisfarçável banalização do desígnio das reformas estruturais. Aí, comete-se um erro de palmatória. Por exemplo, o Governo vangloria-se: “Cerca de 80 exemplos de reformas já feitas!” Como? Estaremos a falar da mesma coisa? Isso só é possível porque o “guião” chama reforma ao que não é reforma nenhuma. Pode ser um reajustamento, uma medida pontual, uma graduação de parâmetros, pode ser propaganda, mas mudança de fundo e permanente não é.

Muito do texto do “guião” não está lá a fazer nada. Em vez disso, muito do que lá deveria estar não está. Deixem-me dar um exemplo de uma lacuna verdadeiramente flagrante.

2. A velha senhora ausente...

Goste-se ou não, a questão do grau do centralismo do Estado pós-reforma irá pôr-se abertamente na mesa do grande reformador quando este reconceituar e redimensionar as estruturas e os regimes das funções do Estado.

Ora, como é possível que a magna questão da regionalização, ou descentralização política do Estado nas regiões continentais, esteja absolutamente ausente do “guião”? Pois não estamos a tratar da reforma estrutural do Estado centralista?

Não colhe dizer-se que o “guião” está mais ao nível do Estado-administração do que ao nível do sistema político (aliás, uma outra omissão total do “guião”) ou do sistema de governo ou da organização política. Desses pontos de vista, penso que a regionalização pertence ao âmbito do “guião”, foi de lá expulsa, mal, ponto final.

E não colhe dizer-se que a regionalização viria a contravapor da contenção da despesa pública. Penso que, se for bem feita, se for sujeita a apertado enquadramento financeiro e a bons controlos centrais (sim, digo centrais), se houver vigilância forte e independente, a descentralização política pode revelar-se o melhor caminho para a auto-reforma do Estado-administração. No “guião”, porém, não vive este modo de pensar. A propósito, cabe perguntar: como foi possível que o centralismo nos trouxesse à situação aflitiva do descrédito financeiro de 2011? Como é que o Estado português, hipercentralizado, se revelou, afinal, um grande gastador? Como é que o centralismo não impediu, ao invés, fomentou a indisciplina financeira, o descontrolo, o despesismo, o défice, o endividamento? Onde estavam as instituições centrais de vigilância da República?

O grande reformador pode estar a favor ou contra a regionalização, não pode é ignorá-la. Desde logo, porque há um imperativo constitucional. O imperativo está longe de ter correspondência nos escassos e esparsos retalhos em que o “guião” fala de descentralizar especificamente isto ou aquilo. Há dois modos complementares de descentralizar politicamente: municipalizar e regionalizar. O “guião” diz alguma coisa, pouca, sobre municipalizar e intermunicipalizar, nada diz sobre regionalizar.

3. As sementes do diabo...

O “guião” assume tacitamente as ideias centralistas do Estado e deixa-as escorrer inconstitucionalmente pelas linhas e entrelinhas do esboço da reforma. Eis um dos grandes fingimentos do pequeno reformador.

O conceito de descentralização política anda associado, como se sabe, ao modo de organizar o Estado à luz do princípio da subsidiariedade, que igualmente consta da Constituição. Um dos contrários da subsidiariedade é o centralismo. Como pode este digno princípio da subsidiariedade estar nominalmente desconvocado, em absoluto, em todo o “guião”?

Desculpem, não sei se me fiz perceber bem, reformam o Estado para ser, mais ainda, centralizado? Para continuar a ser um dos mais centralizados da Europa?

Silêncios do “guião” que, além do mais, são um absurdo que se vira contra o pequeno reformador. Porque, salvo melhor opinião, os silêncios contêm as sementes de uma inconstitucionalidade do diabo, que berrará aos céus. Qual será o julgamento do Tribunal Constitucional se porventura este “guião” for convertido em lei de bases da grande reforma do Estado e alguém, então, se lembrar de interpelar o tribunal?

O pequeno reformador bane do território do “guião”, aprioristicamente, o que devia ser um dos principais elementos de ponderação reformista, digo bem, ponderação, em torno do que há-de ser o novo Estado pós-reforma. O Tribunal Constitucional não poderá fazer vista grossa quando o “guião” vier “guiar” a reforma do Estado e vier, portanto, abrir uma nova e rara oportunidade política para cumprir uma velha imposição constitucional.

Imposição cujo acatamento tem sido sucessivamente adiado por força da astúcia de políticos centralistas, de que o “guião” é um novíssimo fruto; um outro foi a inscrição constitucional do refendo e o consecutivo chumbo do concreto mapa de 1998; um outro foi a gaveta onde o primeiro-ministro da altura confessadamente pôs a lei-quadro da regionalização, lei 56/91.

Agora, “das duas, uma. Ou se entende que o país não quer, de todo, a regionalização, e então ter-se-á de rever a Constituição, retirar de lá os artigos 255.º e seguintes e retocar o artigo 6.º da subsidiariedade. E ter-se-á de revogar integralmente a Lei 56/91. Ou se entende que o país quer a regionalização, e então que se regionalize em concreto. Os políticos que decidam uma coisa, ou outra. Não devem é eternizar o impasse da regionalização, em cumplicidades que desacreditam as instituições e o regime. É a política furtiva, esquiva, no seu pior”. Foi isto o que escrevi no citado livro, em 2005, só que agora o aforismo “das duas, uma” ganha outra acuidade por existir o “guião” da reforma do Estado.

Economista, ex-ministro das Finanças

 
 
 

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