Os dois tons do descontentamento numa noite que "recordou o PREC"

“Recordou-me o PREC [Processo Revolucionário em Curso de 1975], em que tudo podia acontecer”. Horas depois, José Adelino Maltez sintetiza os acontecimentos: a manifestação das polícias junto à Assembleia da República e a conferência liderada por Mário Soares em defesa da Constituição, da Democracia e do Estado social. “Ocorreram coisas novas, polícias a pisar o risco, uma manifestação de massa de elites e, depois, voltámos à normalidade comunicativa”, refere o professor universitário e investigador de Ciência Política.

“O que se passou em São Bento tem um valor simbólico”, analisa Carlos Jalali: “Afinal os limites aos protestos podem ser ultrapassados.” O director de mestrado de Ciência Política da Universidade de Aveiro admite uma dúvida: “Até que ponto as forças que estão para cumprir as ordens políticas as cumprem num contexto de contestação generalizado?”. Contudo, desdramatiza: “Será sempre uma atitude que não põe em causa a estrutura política estabelecida”. O seu valor é, portanto, simbólico.

Já para Boaventura de Sousa Santos, em São Bento virou-se uma página. “O que está em causa é o miolo do Estado, não é possível manter o direito e a ordem humilhando as forças de segurança”, destaca o director do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. “Há um processo em cadeia, aí está a ameaça de greve do Ministério Público e, na Aula Magna, o general Pinto Ramalho disse que, com o Orçamento do Estado para 2014, as Forças Armadas não estão em condições de cumprir as suas missões constitucionais, pois estão abaixo de mínimos.”

General, antigo ministro da Defesa Nacional com Mota Pinto e Lourdes Pintasilgo, Loureiro dos Santos não esconde preocupação pelo ocorrido nas escadarias do Parlamento. “O efeito dissuasor que as forças de segurança têm pode estar ameaçado”, refere. Na conferência de Soares, na qual participou através de uma mensagem, Loureiro dos Santos vê “um grande sinal de descontentamento de grupos alargados da sociedade”.

Em comum, os quatro peritos ouvidos pelo PÚBLICO retiram a mesma conclusão. O descontentamento campeia. Já quanto às suas consequências divergem. “Quando o Governo actuou como actuou no núcleo duro e mais íntimo do Estado, produz uma reacção em cadeia. Para voltar atrás, são precisas eleições antecipadas”, sustenta Sousa Santos. “Há um espírito organizado de revolta”, corrobora Adelino Maltez: “As associações sindicais controlaram os seus manifestantes e atingiram o seu objectivo.”

Para Jalali, se “há uma polarização da narrativa”, também vigora “o cansaço que se viu no último protesto de Que se Lixe a Troika”. Ou seja, não há pólvora para um rastilho. Aliás, recorda o professor de Aveiro, o tratamento desigual pelo Estado detectado “na Caixa Geral de Depósitos ou no Banco de Portugal não levou a uma contestação mais ampla.” Se houver uma falência das forças de segurança, recorda Loureiro dos Santos, há mecanismos constitucionais, como o estado de excepção: “Tenho a percepção de que não haveria problemas, mas a situação pode degradar-se com repercussões a título individual nos elementos das Forças Armadas.” O antigo ministro compreende o tom da intervenção de Mário Soares, mas faz uma ressalva: “Se fosse eu, não utilizaria aquelas palavras, podia ter falado sem ser tão assertivo.”

Entrará a noite de 21 de Novembro na história das datas de contestação ao executivo? “O 15 de Setembro de 2012 foi uma explosão, outra pode ocorrer, pode haver um erro trágico se o Governo continuar a desprestigiar o Tribunal Constitucional”, alerta José Adelino Maltez. “O actual ponto de partida é mais baixo, afecta menos gente”, contrapõe Carlos Jalali. “Houve um grito de indignação na Aula Magna, e a manifestação é mais pela qualidade do que pela quantidade”, observa Boaventura de Sousa Santos. “Tudo o que se passou na quinta-feira foi preparado, o descontentamento foi mostrado de forma diferente”, refere Loureiro dos Santos.
 

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