Uma década depois, o futebol curvou-se perante o génio de Messi
Argentino estreou-se precisamente há 10 anos pela equipa principal do Barcelona, no Estádio do Dragão, e desde então tem desafiado os recordes e a lógica. Aos 26 anos, já ganhou um lugar na galeria das lendas da modalidade.
Por estes dias, Messi anda triste. O diagnóstico é do guarda-redes Valdés, um admirador assumido das qualidades do companheiro de equipa e um profundo conhecedor da glória e das agruras do futebol. O número 10 dos catalães foi forçado a uma paragem prolongada por força da lesão contraída frente ao Betis, na 13.ª jornada da Liga espanhola, e está no estaleiro. É a 11.ª lesão da carreira, a nona de carácter muscular, a quarta no bíceps femoral esquerdo. Sim, a informação produzida sobre o Bola de Ouro chega a este ponto.
De resto, há muito que a vida do craque argentino se mede em números. Em golos, jogos, assistências. Em títulos, finais, internacionalizações. Em recordes que caem e na promessa de outros que terão o mesmo destino. E já que estamos com a mão na massa, aqui fica um brevíssimo resumo de uma década no Barcelona: 391 partidas, 323 golos, 21 troféus. Um palmarés só ao alcance dos predestinados.
“Era algo de sobrenatural”
Hoje, é fácil descarregar elogios sobre um jogador consagrado. Mas quão invulgar era o talento de Messi quando deu os primeiros passos num campo de futebol? Salvador Aparicio, então treinador do Abanderado Grandoli, um clube de bairro de Rosario, puxa a bobine atrás: “Fazia seis, sete golos por jogo. Esperava que o guarda-redes adversário batesse a bola, recebia-a de um companheiro e driblava toda a gente até à área contrária. Era algo de sobrenatural”.
E porque nunca é de mais recordar o momento em que o pequeno argentino experimentou o futebol de 11, aqui fica o relato do antigo técnico, em declarações à Part of the Game TV: “Ele costumava vir aqui com a família. [Num dia de jogo das camadas jovens] Olhei para a bancada e vi-o a pontapear uma bola e a mim faltava-me um jogador. E perguntei à mãe se mo ‘emprestava’. A princípio não queria, dizia que nunca tinha jogado. Respondi-lhe que não fazia mal, que não teria de fazer nada de especial. E a avó, que estava com eles, convenceu-a a deixá-lo jogar”.
Messi tinha, então, quatro anos. “A primeira bola que veio na direcção dele, pelo lado direito, deixou-a passar. A segunda caiu para o pé esquerdo: pegou nela, saiu em diagonal para o meio do campo e levou toda a gente. Eu gritava: ‘Remata, remata’, mas ele era muito pequeno. Desde então, nunca mais saiu da equipa”, recorda Aparicio.
Sairia apenas para mudar de ares, numa decisão que pouco teve a ver com interesse desportivo. Aos 11 anos, foi detectado a Messi um problema hormonal que lhe afectava o desenvolvimento ósseo. Como o tratamento, à base de injecções nas pernas, custava perto de 1000 euros mensais, a família primeiro socorreu-se da ajuda da empresa onde o pai do jogador trabalhava. Mas quando, ao fim de dois anos, a fonte secou, entrou em cena o Newell’s Old Boys e uma promessa de custear todas as despesas médicas.
Foi nesse contexto que chegou a um dos clubes mais emblemáticos da Argentina. Foi nesse contexto que se cruzou com treinadores como Gabriel Digerolamo e Ernesto Vecchio. “No dia em que mo trouxeram, eu disse: ‘Bem, isto é algo distinto de tudo o que podíamos supor’”, recupera o primeiro, num documentário sobre a ascensão do jovem prodígio. “Tinha uma técnica espectacular, que não se ensina a ninguém. Já se nasce assim”, acrescenta o segundo.
Dois minutos convenceram o Barça
Mas não passou muito tempo até o percurso de Messi no Newell’s ter também os dias contados. O clube deixou de cumprir os pagamentos e o pai de “Lio” levou-o a uns testes de captação no River Plate. Poucos minutos em campo bastaram para convencer os responsáveis pelo clube, mas o facto de ter uma ligação ao emblema de Rosário levou-os a recuar. A perspectiva de terem de ressarcir financeiramente o rival travou uma potencial transferência.
É então que a hipótese Europa entra nas contas. Com parentes em Lérida, na Catalunha, o pai de Messi decide tentar a sorte em Barcelona. A família aloja-se num hotel da cidade e desespera pela chegada de Carles Rexach (ausente numa viagem a Sydney), o director desportivo dos blaugrana encarregado da missão de observar e avaliar o potencial do argentino. Por esses dias, chegam a pensar voltar à América do Sul, de mãos vazias e sonhos desfeitos.
A persistência, porém, acabaria por dar frutos. Em entrevista ao El País, Rexach recorda o que lhe passou pela cabeça quando viu Messi, então com 13 anos, em acção pela primeira vez. “Já tinha visto muitos miúdos e levávamos sempre vários dias para decidir, porque há dúvidas em contratá-los tão novos. Mas quando o vi, dois minutos chegaram. Não tive dúvidas. Sentei-me no banco para desfrutar do seu futebol e no final recomendei a contratação”. “Ele ainda esteve cá 15 dias, mas sobraram 14”, diria mais tarde, com humor.
Entre a recomendação de Rexach e o contrato com o clube ainda correu alguma água debaixo da ponte. A tenra idade do jogador, o facto de ser estrangeiro e de não poder alinhar de imediato nas camadas jovens e a doença que enfrentava deixaram alguns dirigentes do Barcelona de pé atrás. O pai de Messi chegou a ver sucessivamente adiadas as promessas de formalização de um acordo e, cansado dos avanços e recuos, ameaçou regressar à Argentina.
Foi nessa altura que se deu o célebre episódio do guardanapo. Em pleno restaurante do Club Tenis Pompeia, Rexach quis provar que o interesse em Messi era real e que não havia volta a dar. Sem outro recurso à mão de semear, aproveitou um guardanapo de papel para assinar aquele que, simbolicamente, seria o primeiro contrato com “Lio” (o documento, de resto, está hoje exposto no museu do clube). Estávamos a 14 de Dezembro de 2000. O contrato oficial seria rubricado a 1 de Março de 2001.
Pequeno génio entre os gigantes
De então para cá, é o que se sabe. Messi tem vencido todas as barreiras, desafiado todas as probabilidades, convencido os mais cépticos. Tem forçado comparações com Diego Maradona e recolhido aplausos em todos os estádios por onde passa. Tem feito história para e com um Barcelona que, por direito próprio, já ganhou um lugar na prateleira das melhores equipas da enciclopédia do futebol.
Pelo meio, vai coleccionando elogios e recordes. Em 2012, marcou 91 golos e superou o recorde de golos num ano que pertencia a Gerd Muller (85); a 20 de Março do mesmo ano, tornou-se o melhor marcador da história do Barcelona em jogos oficiais ao chegar aos 234 golos, depois de já se ter notabilizado como o primeiro a chegar aos 200 golos com apenas 24 anos; ainda em 2012, assumiu-se como o primeiro jogador a conquistar quatro Bolas de Ouro, ainda para mais de forma consecutiva (e está nomeado para a de 2013).
"O melhor do mundo é Messi. O segundo melhor é Messi lesionado. Nasceu para jogar futebol, é o primeiro génio do século XXI. É incomparável", avalia o compatriota Jorge Valdano, antigo director desportivo do Real Madrid, em declarações à rádio RAC 1.
Aos 26 anos, o craque do Barcelona já conta com uma galeria de momentos inesquecíveis suficiente para produzir, pelo menos, uma ambiciosa curta-metragem. Um dos mais emblemáticos será o golo marcado ao Getafe, em 2007, uma espécie de cópia mais do que à altura do original de Diego Maradona que é considerado por muitos como o melhor da história dos Mundiais (aquela coreografia individual que parte do meio-campo e só termina na baliza, nos quartos-de-final do México 1986).
Mas há muito por onde escolher. Dos cinco golos apontados ao Bayer Leverkusen (foi o primeiro futebolista a conseguir tal proeza num jogo da Champions no actual formato), a 7 de Março de 2012, aos 24 hat-tricks que já assinou com a camisola do Barcelona, o último dos quais na primeira jornada da Liga dos Campeões desta época, frente ao Ajax. Tudo parece simples quando a bola lhe chega aos pés. Tal como parecia há 16 anos, quando era já a estrela mais reluzente da geração de ouro das camadas jovens do Newell’s.
“Lembro-me da final de um torneio em que começámos o jogo sem o Lio. Não chegava, não chegava. E terminou o primeiro tempo sem o Lio chegar. Perdíamos por 1-0”, lembra Juan Cruz Leguizamón, ex-companheiro de equipa e amigo de infância de Messi. “Viemos a saber que ele chegou tarde porque tinha ficado fechado na casa de banho, em casa, e teve de partir o vidro da porta para sair. Quando chegou, fez três golos e ganhámos o torneio”.