Textos de João César Monteiro serão lidos, mas não por Poiares Maduro

Polémica em torno do festival de Paulo Branco gerou carta aberta e cancelamento da presença do ministro. Leitura da obra necessita de autorização do detentor dos direitos.

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O cineasta João César Monteiro Daniel Rocha

Uma carta aberta subscrita por realizadores como Pedro Costa, Margarida Gil e Manoel de Oliveira e por escritores e artistas como Herberto Helder, Maria Velho da Costa ou Rui Chafes criticava sexta-feira no PÚBLICO a iniciativa do festival organizado pelo produtor Paulo Branco. A missiva, entretanto transformada em petição online, lamentava o “abuso puro e duro” que é “branquear, neutralizar, festivalar o furor interventivo, manifestamente Anti-Sistema, do cineasta, assim posto à mercê de tais canibais homenageantes”, além de referir que não foi pedida qualquer autorização ao detentor dos direitos da obra (o filho do realizador, João Pedro Monteiro Gil), para esta leitura pública. Paulo Branco não quis prestar declarações.

Manuel Lopes Rocha, advogado especialista em direitos autorais na sociedade de advocacia PLMJ, explicou ao PÚBLICO que "é sempre preciso pedir autorização ao detentor dos direitos", quer se trate de cartas, excertos de livros ou outros textos, "porque uma leitura pública é uma interpretação do texto. Qualquer representação de uma obra tem de ter a autorização do detentor dos direitos". E, acrescenta o perito, se houver inéditos nas leituras cuja edição esteja prevista futuramente pela família, "o herdeiro tem o direito ao inédito".

A realizadora Margarida Gil, uma das signatárias do texto, disse ao PÚBLICO que César Monteiro (1939-2003) “nunca permitiria uma coisa destas”. “Não ponho de lado que tenha havido uma intenção de fazer uma homenagem”, ressalva sobre o intuito de Branco, que produziu muitos trabalhos de César Monteiro, como Branca de Neve ou As Bodas de Deus, “mas pôr um ministro, um governante, a ler um texto do João César é desfavorecer e desprezar ainda mais o cinema em Portugal”.

Leitores Improváveis, com entrada livre, está agendado para este sábado, às 17h, no Museu de História Natural, em Lisboa, estando ainda previstas leituras de textos de João César Monteiro por Isabel Moreira, pela psicóloga Joana Amaral Dias, pelo arquitecto Manuel Graça Dias, pelo escritor Jorge Vaz de Carvalho ou pela actriz Alexandra Lencastre. Ao final da manhã de sexta-feira, fonte do gabinete de Poiares Maduro disse então que o convite de Paulo Branco foi aceite "a título pessoal" pelo governante, que terá deixado "claro que havendo algum constrangimento ou situação que causasse ruído pela sua presença, por não querer dar à leitura uma dimensão política" repensaria a sua participação. Assim, segundo a mesma fonte, Poiares Maduro "não vai à leitura porque não quer que o foco [do evento de homenagem] se desvie".

Isabel Moreira, questionada sobre a polémica em torno da leitura destes textos por agentes políticos, responde: "Não estou amputada dos meus direitos cívicos por ser deputada. Leria um texto do João César Monteiro há dez anos", sobretudo pela sua pela “escrita insubordinada”. Há evidentemente uma empatia entre a minha forma de ver a escrita e o facto de ser o João César Monteiro, com textos altamente insubordinados, nomeadamente a contestar a política cultural" e que hoje devem ser relidos, rematou. Poiares Maduro iria ler uma carta de João César Monteiro de Maio de 1993, onde o realizador declarava ao então Instituto do Cinema Português nada querer ter a ver com o cinema português, proibindo a exibição de dois filmes seus num festival.

O realizador Joaquim Pinto foi produtor de João César Monteiro em Recordações da Casa Amarela e centra a polémica em torno deste evento na questão da autorização por parte da família, frisando que “o trabalho e os textos do João César são incorruptíveis pelos poderes. Ser lido por esta ou outra pessoa em qualquer contexto não tem grande importância".

Já Ana Isabel Strindberg, companheira de anos de João César Monteiro e sua assistente de realização, estava "absolutamente indignada e entristecida que um festival como este, dirigido por Paulo Branco, que foi produtor do João César Monteiro, não se preocupe com os filmes" do realizador e se foque sim nos seus textos. "A melhor forma de homenagear um cineasta é exibir os seus filmes em boas condições". Restaurados, algo que, considera, urge fazer dado o estado em que se encontram as cópias existentes, quer as dos filmes produzidos por Branco (e vendidos à ZON) quer as dos títulos produzidos pela RTP.

Margarida Gil adiantou também que "a obra escrita total de João César Monteiro – guiões, textos e outros escritos – está já a ser coligida, por ordem cronológica" para uma edição ainda sem data pela Letra Livre em colaboração com a Homem do Saco, além da reedição dos textos já publicados. O filho de João César Monteiro, João Pedro Monteiro Gil, terá decidido que as receitas provenientes da venda dessas futuras obras reverterão a favor da recuperação dos negativos dos filmes do pai.
 
 

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