Tratado sobre a cobardia sem mestre

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Com obra feita na poesia e no teatro, Carlos Alberto Machado, nascido em Lisboa, vive actualmente nas Lajes do Pico, para onde uma conferência sobre o amor o levou e a paixão pela então vereadora da Cultura e depois presidente da Câmara Sara Santos fez ficar e casar. Desde 2011, os dois têm uma editora, a Companhia das Ilhas, que vai já com 22 livros publicados, principalmente de poesia e teatro.

Aos quase 60 anos, mercê de uma bolsa do Centro Nacional da Cultura, publica agora o seu primeiro romance: Os Hipopótamos em Delagoa Bay, história de uma família de portugueses em Moçambique que inscreve o 25 de Abril e a independência daquele país africano numa narrativa polifónica não-linear, umas vezes poética, outras histórico-factual, povoada de homens marcados, mulheres silenciosas e um malnascido que, curiosamente, estava no centro do projecto e acabou secundarizado como personagem, embora não como elemento-chave para um certo fatalismo da história.

A génese do livro, que foi tendo vários títulos, incluindo Nigredo (termo latino usado pelos alquimistas para denominar a morte espiritual), aconteceu na primeira visita de Carlos Alberto Machado ao continente africano, em 1995: “Nunca tinha estado em África e sou apanhado por uma realidade muito diferente da nossa que só conhecia de ler, de ver nos filmes. É um choque grande, no sentido positivo e negativo.” Juntando as pessoas que foi conhecendo e a leitura de O Silêncio do Corpo, de Guido Ceronetti, onde encontra a história do gémeo que mata o outro durante o parto ou a gestação — “o jovem macabro” —, estava montado o esqueleto que a bolsa ajudou a dar corpo com investigação, leituras e mais dois meses em Moçambique em 2010.

Escrever sobre um espaço que não era seu, conhecido há pouco tempo, foi para o autor um desafio. “Tive outros receios”, refere, “o do desconhecido, não”. Sentiu-o “como um estímulo muito grande”, até porque não acha que seja possível “conhecer seja o que for”. Assustaram-no mais as coisas de “natureza literária”, explica: “Porque sei que estou a arriscar com esta forma de encarar o romanesco, a ficção à mistura com uma parte quase histórica ou etnográfica, espécie de etnoficção.” O termo, alimentado pelas leituras de Marc Augé, surge mais vezes na conversa, porque, “às vezes, a simples reposição de um dado altera a visão que temos da realidade”.

A família Quaresma, pelo contrário, “é completamente inventada”, embora o autor admita que possa haver, aqui e ali, coincidências, dada a “bricolage” com que foi montando o livro, “cheio de coisas misturadas” — nomeadamente na composição de Hermínio Quaresma, o patriarca, feito com aspectos “roubados aqui e ali”.

Romance polifónico — Carlos Alberto Machado admite a limitação da sua escrita quase esquizofrénica: “Penso que não sei escrever de outra maneira, não é uma atitude consciente, intelectual, teórica” —, de constantes saltos no tempo, Os Hipótamos em Delagoa Bay parece brotar a jorros em escrita automática. Contudo, “apesar de haver uma certa espontaneidade no momento de escrever, às vezes sem saber muito bem qual o passo seguinte”, há nele muito “trabalho de formiguinha, de costureirinha”. Mesmo procurando “não deixar o leitor demasiado sem rede”, o arrumo dos capítulos foi feito “mais pela forma, pelos impulsos, pelas intensidades, como se se tratasse quase de música, e menos com a preocupação de construir uma história com princípio, meio e fim”. Embora, de facto, “a história tenha princípio, meio e fim”.

Repensar tudo

Alguém escreveu sobre este livro dizendo que se trata de um ajuste de contas com o 25 de Abril, argumento que o autor só admite em parte — porque não há nele nem recusas, nem arrependimentos —, apenas no sentido em que as pessoas da sua geração precisam de “repensar tudo, olhar com olhos limpos para o que foi feito, para o que está a ser feito” e “voltar a discutir sem partis-pris”.

Em resultado disso, temos um livro que se recusa a glorificar os heróis e nutre simpatia pelos cobardes, não pelos desprezíveis que a palavra costuma evocar, mas por aqueles que, fazendo “tábua-rasa de si próprios”, avançam, “umas vezes de olhos abertos, outras de olhos fechados”. “Como a hipótese de vencer é pequena e longínqua, estão sempre a perder; os que ganham são normalmente os gajos corajosos mas que não têm muita piada.” Depois de ler as primeiras 18 páginas do livro, o jornalista e escritor António Cabrita, a viver há uma década em Moçambique, chamou-lhe mesmo um “tratado de cobardia”. As referências aos dois heróis da independência moçambicana, Eduardo Mondlane e Samora Machel, são tudo menos louvaminhas, principalmente em relação ao primeiro. O escritor brinca: “Se um dia for a Maputo, não sei se saio de lá vivo.” Mais sério, acrescenta: “Eu acho a figura do Mondlane um bocado caricata, usada por uns e diabolizada por outros. Há quem diga que foi morto pela CIA, outros que foi a PIDE, outros que foram os próprios camaradas da Frelimo, por ser um contra-revolucionário, um homem ao serviço dos americanos.”

Marcado, a abrir, pelas fotografias do também poeta Jorge Aguiar Oliveira e, a fechar, por uma citação de José Mário Branco — “Houve aqui alguém que se enganou”, da letra de Eu vim de longe, cujo verso anterior não podia ser mais explícito (“Foi um sonho lindo que acabou”) —, Hipopótamos em Delagoa Bay narra a história de uma família, de uma revolução, de uma independência e de um país novo através do pó deixado no ar depois de passarem, da oxidação dos materiais de que foram feitos, do aquém a que a realidade fica do além sonhado. “A citação final do José Mário Branco existe quase desde o princípio do livro, como espoletador”, sintetizando a atitude de Carlos Alberto Machado sobre temas como “cobardia, descrença, ajuste de contas”. Não podia estar no princípio? “Por razões do meu foro de loucura, achei que não devia pôr à cabeça uma chave possível do livro”, explica o autor. As fotografias, “absolutamente espantosas”, vieram mais tarde, por sugestão do editor, mas o livro podia ter sido escrito a partir delas: “Foi isso que senti quando o João Paulo Cotrim mas enviou a perguntar se eu gostava.”

Mas se essas ligações a priori e a posteriori são fáceis de entender, mais custa perceber o que leva um lisboeta que foi viver para as Lajes do Pico por amor a desatar a escrever sobre Moçambique, terra à qual não tem ligações que não as fortuitas de uma viagem em meados de 1990 por razões de trabalho. “Não importa” onde se vive, “porque Moçambique não existe, os Açores não existem, Lisboa não existe”, importam apenas “os percursos que vamos fazendo” até estes lugares: “A gente encontra-se com as coisas e as coisas encontram-se connosco e o resto é paisagem.”

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