Peixe cru também é isto (e ainda bem)

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DATO DARASELIA

Havia talvez que ler-se nas entrelinhas para detectar um ligeiro desapontamento nos Peixe:Avião após a primeira apresentação pública do seu terceiro álbum, homónimo, no sábado passado. Coisa ténue, inconfessada pelos músicos tanto nos segundos após a derradeira saída de palco como ao longo das horas seguintes de desmontagem e descompressão, reunidos antes em torno da ideia de que a estreia de peixe:avião no Theatro Circo, em Braga, tinha sido um dos seus melhores concertos dos últimos tempos. Pouco, muito pouco, haverá a opor a isso. Dispostos em linha, numa solução cénica evocadora dos Kraftwerk – num despojamento cuidado e em que a música contorna conscientemente clímaxes cujos desfechos falsamente óbvios a imprudência faria apostar a própria vida –, preferindo o estado continuado de uma suspensão tensa quando os instrumentos se reforçam numa espécie de redemoinho sonoro, o grupo justificaria em palco o porquê de o novo registo ser, sem espinhas (o trocadilho está demasiado a jeito), um dos mais inventivos e consistentes álbuns da pop portuguesa dos últimos anos. Pop num sentido lato, naquele que abarca gente recomendável como os Três Tristes Tigres.

E essa será a razão principal para o tal assomo de desapontamento. Com um disco de espanto em mãos, mostrando-o a escassos quilómetros da sua sala de ensaios no antigo Estádio 1º de Maio, o entusiasmo do público em tudo condizente com o da banda merecia, pelo menos, ter dobrado em assistência (quase três centenas). A crise não perdoa, dir-se-á. Mas há aqui um outro factor a ter em conta: a decisão consciente dos Peixe:Avião em optarem por um dos lados. Em Madrugada (2010), acredita Luís Fernandes, não eram “nem peixe nem carne”. “Em termos de percurso”, defende ainda, “uma banda como a nossa não pode almejar a ser um sucesso comercial – que não vai ser. O caminho para vingar é ser relevante artisticamente, o que quer que isso seja. [Em Madrugada] Nem éramos comerciais, nem alternativos. Por isso, sentimos que não íamos perder absolutamente nada ao fazer um disco assim”.

“Assim”, descodifiquemos, significa que os Peixe:Avião deixaram cair quaisquer ambições irrealistas de vendas e permitiram-se avançar para um processo de risco e de autoinfligida crise de identidade para daí nascer uma nova personalidade colectiva. “Este fizemo-lo mais para nós”, reconhece o baterista Pedro Oliveira. “No Madrugada tínhamos outra expectativa, de pensarmos que era porreiro se vendêssemos bastante. Não com a preocupação de sermos conhecidos, nada disso, mas que resultasse comercialmente enquanto disco”. Parte desse rumo reflectia-se na busca de evasões para outros mundos, facilmente exemplificáveis na voz de Manuela Azevedo (Clã) e no piano de Bernardo Sassetti. Agora, como qualquer crise, esta foi vivida em recolhimento.

O modelo Portishead

Não enterrando em definitivo os passados dois álbuns, a busca por um novo método de trabalho criou uma fissura entre os dois períodos. Mas se peixe:avião é já um feito por si só, parece não só peneirar a enxurrada de pistas em que o grupo bracarense equilibrava as suas canções – “como fazíamos as coisas em casa, no computador, acabávamos por ter uma maior abstracção, começávamos a exagerar nas pistas, nos overdubs, porque não estávamos a tocar o instrumento, estávamos a compor”, lembra André Covas –, como também escancarar as possibilidades futuras.

A nova abordagem implicaria uma outra viagem no tempo. O quinteto usara até aqui, com total proveito, o domínio das tecnologias que permite a construção de canções a partir da troca de ficheiros e do trabalho caseiro individual. Em peixe:avião, as músicas nasceram a cinco, na forma tradicional de sala de ensaios dos tempos em que ninguém sonhava com computadores de logótipo-maçã-roída, abrindo igualmente lugar à frustração. “Numa fase inicial, isso acabou por ser custoso”, lembra o baterista. “Andámos ainda muito tempo a partir pedra antes de encontrarmos o caminho que queríamos. Quando após alguns ensaios não há resultados é desanimador”. Para Luís, a frustração provinha de “passar muito tempo na sala, estar lá com mais quatro marmelos e nada acontecer”. O processo serviria de teste. Depois de cinco anos de muita actividade e alguma “saturação entre as pessoas”, a insistência começaria a dar resultados. Basilar para a simplificação de processos seria um disco consensual – Third, dos Portishead, exemplo de uma crueza que ajudaria a nortear as sessões.

Third – assim como os Beak, projecto paralelo dos Portishead – interessar-lhes ia não enquanto modelo de linguagem musical, mas antes como referência de um disco “muito cru e simples ao nível da sonoridade”, tomado por farol na autoeducação adoptada nas sessões de composição do álbum. Esse ambiente comum à banda de Bristol, também alimentado por uma familiaridade com o kraut rock dos anos 70, reconhece-se quando os Peixe:Avião sobem ao palco do Theatro Circo e arrancam com a brilhante tensão de Prismas. A partir daí, o alinhamento segue a par e passo aquele que escolheram para o álbum, sem ingerências do passado. Em parte, porque queriam “apresentar o disco como um todo”. Mas também porque à medida que foram colocando novas e antigas lado a lado, não demoraram a concluir que tinham acabado de erigir um mundo diferente – comunicante, mas claramente autónomo. Por agora, preferem não fazer ruir a coesão dos temas novos, deixando para mais tarde a solução para o problema da coexistência com os discos anteriores.

Uma tarde e uma manhã

No caminho delineado para o concerto, peixe:avião surge-nos com o mesmo arrojo que na sua versão de estúdio, até porque a gravação foi captada em registo ao vivo por Nélson Carvalho, que encontramos no posto de comando sonoro do Theatro Circo. Para Pedro Oliveira, a revisão de metodologia tem esta enorme vantagem em palco: a concentração que antes era necessária para não errar na gestão dos bancos de sons dos sintetizadores – uma só canção chegava a recorrer a tantos setups quanto todo o novo álbum – tem agora autorização para descansar, libertando o grupo para a interpretação. Daí que a intensidade suba naturalmente no delírio controlado do reportório, até mesmo quando entra em cena Avesso, tema escolhido para single e nitidamente mais imediato – sem, ainda assim, pisar no acelerador melódico dos temas de Madrugada.

De seguida, Torres de Papel aparece como a excepção à procura activa e deliberada de “músicas com estruturas pouco convencionais – algo de que já estávamos à procura mas nunca tínhamos conseguido”, diz o baixista José Figueiredo. Aproveitando uma ausência forçada do estúdio por parte do produtor Nélson Carvalho, a par de um atraso do seu assistente, e tendo todos os instrumentos ligados, os Peixe:Avião começaram a experimentar com o que haveria de ser a canção, registada horas depois. Algo que soa altamente improvável na anterior vida do grupo. Sendo uma canção mais directa, Figueiredo brinca (ou nem por isso) dizendo que “não houve tempo” de a complicar. Esta espontaneidade passou a integrar uma banda que levou um ano a compor e a mastigar Madrugada, juntando mais de 40 ideias para canções, classificadas por pequenos grupos que indicavam os ambientes. “Foi uma fase muito nerd da nossa vida”, resume Figueiredo; “estávamos a olhar para o nosso próprio umbigo”, acrescenta Oliveira. Torres de Papel, por seu lado, levou uma tarde a pôr de pé, depois de a gravação de todos os instrumentais do álbum lhes ter levado apenas uma manhã e uma tarde.

Nos camarins, antes ainda do jantar pré-concerto, Pedro Oliveira confessa que, há três anos, a complexidade de execução de Madrugada lhes roubara a descontracção que agora aparentam. Se há um frio a apoderar-se das barrigas, é consequência da incógnita que representa a reacção do público à reencarnação musical do grupo, e não devido a inseguranças do espectáculo rigoroso que levam para palco. O ensaio de som com Nélson Carvalho deixa claro que a única situação que se afigura imprevisível é a forma como eles próprios reagirão à nova disposição de palco, que se revela de eficácia imaculada, ajudada pela simetria entre Luís Fernandes e André Covas, ambos dividindo afazeres entre guitarras e teclados, ladeando o palco. Tábua rasa, costuma dizer-se. Desta vez, ouve-se e vê-se.

Ao centro, Ronaldo Fonseca vai deixando escapar aquele fio de voz delicado e frágil, ainda mais desconcertante se soubermos que há coisa de dez anos se sagrou vice-campeão mundial de karaté. Pouco tempo depois, em vez de um pontapé bem colocado que o estendesse no tapete, foi a música que o abalroou. Mas os resquícios desse passado desportivo dão de si quando desaparece momentaneamente do ensaio de som e toma a deixa de uma demonstração de ioga que ocupa a rua contígua ao Theatro Circo para exercitar uns alongamentos. Em palco, pelo contrário, Ronaldo é o mais quieto dos elementos.

As letras para peixe:avião, admite o vocalista, seguiram o mesmo mote adoptado pelos instrumentos, farejando a simplificação. “Tentei simplificar, não só na escrita da mensagem mas também ao nível da componente musical, porque antes tentava fazer muitas coisas que, ao fim e ao cabo, não consigo. Oxalá que nas nossas próximas criações a coisa ainda seja mais modelada, que a voz fique mais circunscrita, mais balizada, que possa prendê-la, pôr-lhe uma trela e não a deixar andar por aí.”. Em termos temáticos, Ronaldo tentou fugir de si, num movimento também ele consonante com a restante banda – no seu caso “deslavando desse registo muito íntimo, muito pessoal”.

O minimalismo dos ambientes explorados em peixe:avião acaba em reacção de fervoroso entusiasmo por parte do público do Theatro Circo. Terminado o essencial da função, os dois encores permitem a revisitação de No Jogo da Quimera, Fios de Fumo (o tema de Madrugada que pressagia o que estaria para vir, defendem), A Espera É Um Arame e Frio Bafio. Apesar das distâncias cavadas pelo grupo, nunca Arame soou tão vital. O facto é que há uns novos Peixe:Avião à solta, com muito por espremer deste novo paradigma. “Ainda há muitos resquícios do antigamente”, analisa Luís Fernandes. “A estética ainda pode ser mais aprofundada”. Os cinco não descansarão, parece, enquanto a sua transformação não for total.

Não pode ser acaso – é demasiado intencional para se candidatar à coincidência – que peixe:avião se deixa arrastar uns segundos, parando de rodar exactamente nos quarenta minutos e dois segundos. Era essa a duração e o título do primeiro álbum, 40.02. Começou tudo outra vez. Só que agora os trunfos são outros.

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