"Não sou um autor negro"

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Adriano Miranda

A Sentinela, de Richard Zimler, é a história de um crime em que nada é o que parece e também o retrato de um Portugal cujas elites políticas e económicas são mesmo o que parecem ser. Mas também não seria falso afirmar-se que os temas do novo romance são os de sempre na já extensa obra ficcional deste americano radicado no Porto: os problemas de identidade, as vítimas de violências várias, a escalpelização minuciosa das relações humanas. A Sentinela não será, portanto, exactamente um policial, ainda que tenha como protagonista um inspector da Judiciária e relate a investigação de um homicídio. Mesmo assim, se é o tipo de leitor que nunca vai espreitar antecipadamente a última página, recomenda-se que reserve esta entrevista para quando tiver fechado A Sentinela.

Depois de Os Anagramas de Varsóvia, reincide no policial com A Sentinela. Ou acha que nenhum deles é um policial?

Descobri que não sou capaz de escrever um policial normal. Li muitos quando escrevi O Último Cabalista de Lisboa, para perceber as tradições e convenções do género, e concluí que, na sua grande maioria, são dominados pelo enredo. Mas para mim, como escritor, o enredo não é o mais importante. Interessam-me as personagens e a qualidade da escrita. Aqui há uma investigação porque o protagonista é detective. O enredo decorre das personagens.

Há outra ligação entre os dois livros, a ideia de duplo, ainda que Erik, o ibbur de Os Anagramas de Varsóvia, e Gabriel, o alter-ego do inspector Monroe, sejam duplos de natureza diversa.

Noto que a maioria dos meus livros lida com a construção da identidade e os seus problemas, mas é inconsciente. Monroe tem uma condição mental que se chama transtorno dissociativo da identidade. Apareceu-lhe em criança um alter-ego que consegue lidar melhor do que ele com a violência na família. Deve haver uma explicação para a presença desta problemática nos meus livros. Se calhar é porque a minha própria conquista da identidade não foi nada fácil. Fui um adolescente muito tímido e desajeitado. Não era quem queria ser, sobretudo sexualmente, e não sabia lidar com os outros. A conquista da minha confiança foi muito dura. Talvez seja a explicação, mas não sei, estou só a especular.

Outra constante da sua obra é o mal, que geralmente mostra de forma crua. Contudo, é difícil vê-lo como um autor noir...

Só escrevi um romance que é mesmo uma tragédia, Goa ou O Guardião da Aurora, e os meus amigos disseram que me matavam se eu escrevesse outro livro tão negro... Sou um escritor realista, sei que o mal existe e que não é um conceito esotérico, que há acções injustas, cruéis, sádicas. Mas não sou um autor negro porque os meus personagens acreditam na possibilidade de vencer, mesmo quando não conseguem ultrapassar os seus problemas.

Ia sugerir que nos seus livros há sempre uma distinção clara entre o bem e o mal.

É uma questão central em A Sentinela. Há muitos estudos que mostram que as pessoas sujeitas a violência na infância tendem a tornar-se agressores e violadores. Um tema muito importante neste livro é a necessidade absoluta que Monroe sente de quebrar esse círculo vicioso. A certa altura diz que se algum dia magoar a mulher ou as crianças, enfia uma pistola na boca e mata-se. Percebeu quando era muito jovem que tinha dois caminhos: ou herdava a violência do pai ou teria quase de jurar que nunca seria violento.

Trata do abuso sexual de menores e, sem nunca se tornar sórdido, esforça-se para que o leitor perceba a devastação que a violação provoca na vítima. Apesar dos seus óbvios cuidados, não receia engrossar esse infindável rol de livros, filmes e séries de TV que banalizam o tema da violência sexual?

É um risco, mas pensei que a minha maneira de garantir que não faria parte dessa máquina seria descrever as cenas de forma a não mostrar o sangue, nem a violência propriamente dita. Aprendi isso com o Hitchcock. Quando a sida apareceu nos EUA, fui a uma conferência em que se falou da dificuldade de dar uma ideia do que sofriam aqueles doentes. O orador relatou o caso de um jovem que regressou a casa após uma hospitalização. Não disse nada do aspecto físico do homem, mas explicou que tinha um cão que o adorava, e que, ao entrar em casa, o cão começou a encaminhar-se para ele, parou, virou-se e fugiu. Pensei: caramba, não é preciso dizer mais nada. É isso que tento fazer.

Um dos aspectos mais fortes de A Sentinela é a relação do protagonista com o irmão. É uma ligação deveras invulgar, muito física, mas que soa estranhamente autêntica. Onde é que foi buscar aquilo?

Fico contente, porque um dos objectivos do livro era criar uma relação única entre Monroe e Ernie, uma ligação muito física, sim, baseada no facto de Monroe ter sido sempre o protector de Ernie. Têm ambos de ultrapassar o que foram em crianças, e é muito difícil. Fazem-no aos poucos e usam o amor para quebrar essa intimidade demasiado forte. A cena mais difícil foi aquela em que Gabriel entra no corpo de Monroe e pensa que Ernie está a abusar do filho do seu irmão. A minha editora inglesa queria cortar, mas eu disse-lhe que nem pensar.

Admiti que pudesse ter mais problemas com o facto de Monroe gostar de se deitar com o filho pequeno, tendo em conta a actual paranóia com a pedofilia nos Estados Unidos.

Tem razão. É com remorso que o confesso, mas em Meia-Noite ou o Princípio do Mundo há mesmo uma cena que foi suprimida na edição americana. É uma cena inocente: três miúdos do Porto estão a brincar ao pé de um lago e o mais velho, de 13 ou 14 anos, pega na mão do narrador, que tem dez, e leva-a ao sexo. O narrador fica perturbado, mas também estimulado, e não percebe as suas emoções. Nada mais acontece. Mas o editor americano insistiu que eu tinha de cortar essa passagem e, estupidamente, cortei-a.

Apesar de todos os seus traumas, Ernie é uma figura quase absolutamente benigna. Os seus livros costumam ter personagens assim: o curandeiro africano de Meia-Noite ou o Princípio do Mundo, o Peter de Trevas de Luz. Crê na objectividade do mal, mas também parece acreditar que andam anjos pelo mundo.

Li muita coisa sobre abuso de crianças. É um assunto que me interessa, em parte porque tive um pai muito violento. Todos os que tiveram infâncias difíceis e vieram a ser pessoas realizadas dizem que houve sempre pelo menos uma pessoa em quem puderam confiar. Uma tia, um professor. Nos meus livros há pessoas dessas, que são como luz na nossa vida. E o que é curioso é que não têm de lá permanecer muito tempo. Um ano pode bastar para se mudar completamente a paisagem psicológica de uma criança.

Criou um detective, o que poderia ser o primeiro passo para uma "série Monroe". Mas quando se chega ao fim de A Sentinela, sente-se que não é só o enredo, mas também a personagem que se conclui. Admite voltar a Monroe?

O romance tinha se aguentar por si próprio, de ter um fim satisfatório. Mas também pensei que seria interessante continuar com Monroe. Não é uma questão de estratégia comercial, é que ainda estou fascinado pelo homem! É uma pessoa que me interessa muito, e se há coisas nele que percebo muitíssimo bem, há outras que ignoro. Sim, é possível que volte a Monroe.

Monroe tem "ausências", durante as quais muda de personalidade, trata mal os colegas e desarruma os locais de crime, mas também descobre pistas importantes. Não é inverosímil que um inspector da Judiciária com estas características progrida na carreira?

Monroe tem sucesso. E os chefes valorizam isso e permitem que ele seja uma pessoa estranha. Ele próprio diz que o director está sempre a mudar as pessoas que trabalham com ele, para não serem "infectadas". E há o facto de este caso lhe recordar a infância e, por isso, ele começar a ter problemas mais graves. No passado, devia controlar-se melhor e talvez tenha tido casos em que o alter-ego nem apareceu.

Mas quando pensa em tratar-se, Monroe receia que ao perder o alter-ego nunca mais seja capaz de resolver um caso.

Isso é muito realista, e é um drama que poderei tratar num futuro livro. Um dos grandes medos das pessoas que têm este transtorno é que, ao tentarem curar-se, percam os seus alter-egos. Os psicólogos dizem que não, que eles se integram nas nossas personalidades, mas Monroe não acredita. No livro há também uma questão existencial: Gabriel tem tanto direito a existir como Monroe.

Mesmo admitindo que o dispositivo dê verosimilhança a um romance que pretende ser também um retrato da crise que o país atravessa, terá valido a pena citar pelo nome ministros e ex-ministros que decerto não tardarão a beneficiar de um misericordioso esquecimento?

É uma corda bamba, porque queremos convencer o leitor de que tudo o que se passa é real, verídico, mas sabemos que não faz sentido estar a enfiar nomes de gente que vai desaparecer daqui a um instante.

É já o segundo romance em que alude ao processo Casa Pia. É um exemplo paradigmático do lado mais negro do país?

É um exemplo da falta de responsabilização. Cometem crimes e não há consequências. Podemos falar da Casa Pia, mas também do BPN e de tantos outros casos. Em Portugal, quase ninguém assume a responsabilidade pelas suas acções, e numa sociedade democrática isso é o mal absoluto.

O essencial desta crise é de ordem moral? Ou essa é apenas a parte que o zanga mais?

Ambas as coisas. Temos uma classe de parasitas que aproveita as circunstâncias para seu proveito, que suga o país e se está nas tintas para os outros. E a classe política está na cama com a elite económica e financeira, porque se não já teríamos tido mudanças. Continua a não haver consequências para quem comete fraudes. Mas o que mais custa é ver gente como Isaltino Morais a ganhar eleições. Um país em que as pessoas se estão nas tintas para a corrupção é um horror.

Já lembrou os africanos escravizados por europeus, as vítimas da Inquisição, os judeus assassinados pelos nazis, até os palestinianos oprimidos por judeus. Escreve essencialmente contra a intolerância?

É possível, mas não é uma decisão política. Gosto de escrever sobre pessoas esquecidas, perseguidas, silenciadas. E tenho uma personalidade subversiva: quando vejo que não se quer falar disto ou daquilo, que é um tema tabu, é sobre isso que vou escrever.

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