Ler Proust é ter todos os sentidos despertos

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“Durante muito tempo fui para a cama cedo. Por vezes, mal apagava a vela, os olhos fechavam-se tão depressa que não tinha tempo de pensar: ‘Vou adormecer.’ E, meia hora depois, era acordado pela ideia de que era tempo de conciliar o sono; queria poisar o volume que julgava ter nas mãos e soprar a chama de luz; dormira, e não parara de reflectir sobre o que acabara de ler, mas tais reflexões haviam tomado um aspecto um tanto especial; parecia-me que era de mim mesmo que a obra falava...”


Em 2003, Pedro Tamen (n. 1934) traduzia desta forma para português as palavras que Marcel Proust vira finalmente impressas no dia 14 de Novembro de 1913. Du Coté de Chez Swann (Do Lado de Swann, ed. Relógio d’Água) saía em edição de autor com o selo da então jovem editora Grasset, após várias recusas, uma delas, histórica, a da NRF/Gallimard, com parecer negativo de André Gide (1869-1951, Nobel em 1947), o mesmo que, depois de ler a obra publicada reconsiderou e chamou “extraordinário” a Proust. Foi há cem anos. Há dez, Portugal tinha uma tradução à altura.


Celebra-se uma obra que mudou não apenas o romance, mas a literatura. Recuemos a 1913, ano em que a modernidade conheceu um dos seus símbolos. “É uma daquelas obras que conferem carácter, como o baptismo aos cristãos. Carácter no sentido grego do termo, o que imprime uma marca identidade, diferenciação. No caso, em quem a lê. Não se fica como antes depois de ler a Recherche”, declara Pedro Tamen. “Sim, há um antes e um depois de Proust”, afirma Pietro Citati (n.1930), o italiano autor do muito traduzido A Pomba Apunhalada, (Cotovia, 2000), sobre o criador da Recherche, que recusa para si a designação de biógrafo de Proust. “Escrevi sobre o homem e a sua metamorfose, o momento em que nasce o escritor; em que se dá essa transformação e o que dela resultou”, diz ao Ípsilon por telefone, a partir de Roma. E o que resultou? “Uma mudança na literatura. Pela primeira vez alguém ligou o saber romanesco e o saber lírico de forma perfeita. Nunca tinha havido uma ligação total”, responde assumindo uma “infinita veneração” por Proust a partir do momento em que percebeu a dimensão da sua obra.


Não foi à primeira leitura. “Era muito novo quando li Do Lado de Swann. Tinha uns 13 ou 14 anos. Fiquei-me por algum ambiente, mas não esqueci.” A noção do génio viria mais tarde. A partir do momento em que leu os sete volumes de Em Busca do Tempo Perdido (Do Lado de Swann, À Sombra das Raparigas em Flor, O Lado de Guermantes, Sodoma e Gomorra, A Prisioneira, A Fugitiva, e O Tempo Reencontrado). De tal forma que quis escrever sobre essa revelação, pegando noutra revelação, a da escrita enquanto elemento de realização de Marcel Proust e que irá revelar-se ao “eu” de Em Busca do Tempo Perdido, narrador passivo a quem se ouve chamar de “Marcel”, apenas no volume V, A Prisioneira. Só aí o narrador ganha um nome, o de alguém que também se vai encontrar com a escrita.

O protagonista

É Marcel, o “eu” da Recherche, quem observa e empresta ao leitor o olhar, a audição, o sentimento de culpa, o amor e o ciúme, o tédio e a perda, a sexualidade ambígua, a dor perante a morte e a partida, a obsessão pela figura da mãe desaparecida cedo. “Este é um romance sobre o tempo e sobre a morte”, nota Pietro Citati. “O tempo é o verdadeiro protagonista”, concretiza Tamen. Pouco tangível, metafísico, difícil de passar a outras linguagens. Veja-se o que não conseguiu Luchino Visconti no seu projecto imenso de passar ao cinema a obra de Proust. Viu Silvana Mangano, a mesma de Morte em Veneza (1971), como duquesa de Guermantes, mas nunca chegou à fórmula final. Roul Ruiz tentou em Le Temps Retrouvé (1998), Chantal Akerman filmou La Captive (2000), Walter Salles fez dele uma pequena aparição em On The Road (2012). Nada à altura de Proust. Embora o livro esteja cheio de imagens. Mas como passar com a mesma mestria o sabor da madalena embebida em chá, o som da sonata de Vinteuil como era sentida pelos que a ouviam? Os sentidos são os dele, o “eu”. E é dele, sobretudo a visão. De Combray, de Balbec, dos quartiers de Paris, do quarto da tia Léonie, de Veneza, do castelo de Guermantes. Reais e enquanto mito. Saber passar essa visão é obra para um grande escritor. Dizia Proust que fazer grande literatura é qualquer coisa parecida com escrever numa língua estrangeira. Ele via-se nessa tarefa. Queria concretizá-la. Era a obsessão.

E o tradutor nisso? Passar para outra língua terá a mesma dificuldade de transpor para outra linguagem? Apesar da enormidade da tarefa, Pedro Tamen crê tratar-se de trabalhos distintos. Há um código comum. Quanto à ideia de Proust de querer sentir-se estrangeiro na própria língua como objectivo máximo, terá a ver com “a necessidade de saltar para fora de si próprio, enfiar outra pele, estar noutro mundo.” Pietro Citati referiu-se a isso mesmo: “Proust tinha em mente um acto absoluto de conhecimento: o conhecimento do outro.”

E Citati quer falar da alegria. Ela estava em Proust. Na geografia da sua escrita, nas paisagens, na ironia, no modo como terá celebrado aquele 14 de Novembro de 1913. “Claro que ele era capaz desse sentimento de êxtase, mas também de felicidade que muitos declaravam contrário à sua natureza”, continua o crítico literário, autor de livros sobre a vida e obra de Franz Kafka, Katherine Mainsfield, Goethe ou Tolstoi. Foi do êxtase que nascera a ideia de escrever essa obra sobre o tempo, sem título definido, “baptismo difícil” e só encontrado depois de muitas hesitações, Em Busca do Tempo Perdido, feita a partir de pequenos momentos do presente que lhe iluminavam a memória e activavam a imaginação, “o instante de inconsciência vaga”, como os define ainda Citati, ou os “souvenir involontaire”, de que o gesto de embeber a madalena no chá é o mais célebre dos momentos proustianos enquanto despertar de sentidos. Diz Citati: “Ler Proust é isso. Ter todos os sentidos despertos, segui-lo na criação, como se os cinco sentidos não bastassem”. Em A Pomba Apunhalada, refere-se-lhes como “sensações de luz e de felicidade luminosa”, uma luz que é a substância da memória. E tudo para dizer da complexidade de Proust, não apenas da obra. “Naquele dia, ele finalmente via publicado o primeiro volume de uma obra que passou a ser mais do que a sua própria vida, a sua própria morte. Estava disposto a morrer por ela, para concretizar essa obra total, e por ela continuava a viver, a alimentar-se, a cuidar da sua saúde.”

A Catedral

O que Proust escrevera antes, crónicas, críticas, correspondência, ensaios, o famoso Contre Saint-Beuve, de 1908, ou mesmo a sua obra de juventude, escrita em 1895 e só publicada postumamente com o título Jean Santeuil, não foram mais do que um grande ensaio para o que aí viria. Por isso se fala do “antes e do depois de Proust” que, no caso, começa por ser o antes e o depois de Do Lado de Swann, a base da “catedral medieval onde todos os pontos se unem, até os mais esquecidos e ínfimos”, volta Citati, pegando no modelo arquitectónico que Proust quis para o seu grande livro onde o protagonista é o tal tempo, perseguido e reencontrado, quase sempre fora do presente porque aí escasseia a imaginação, e descrevendo a sua génese, “… entregou-se a um sonho: compor um livro com frases e episódios feitos apenas da substância transparente dos seus melhores minutos, quando vivia fora da realidade e do tempo; escrever um livro com ‘gotas de luz’, ‘essências’ e analogias. A dúvida, porém, não lhe dava descanso, porque tanto o homem da analogia como as ‘essências’ são intermitentes: como era possível escrever um romance só com ‘gotas de luz’?”

Claro que o desafio era ambicioso, mas Proust, apesar de conhecer bem o sentimento de fracasso que por vezes o invadia, sentia-se à altura da sua proposta. “Nela, cumpria a necessidade absoluta que sentia de escrever”, sintetiza Citati. “A Recherche não visa um passado, visa uma revelação futura, que provoque o movimento em sentido contrário da narração”, precisa na sua obra crítica. Isso explica em parte a sua insistência após o “chumbo” de André Gide, que terá passado apenas os olhos pelo manuscrito de 712 páginas que Proust entregou à NRF, de Gaston Gallimard. A nota de recusa viria com a data de 23 de Dezembro de 1912. A porta seguinte foi a da casa Ollendorff, em Janeiro de 1913, e um novo “não” assinado pelo editor Alfred Humblot numa nota recentemente reproduzida por António Mega Ferreira (Público, 2/8/13): “Não consigo compreender como um cavalheiro gasta trinta páginas a descrever as voltas e reviravoltas que dá na cama, antes de adormecer.” Só em Fevereiro convence a Grasset a publicar Do Lado de Swann. Ele pagaria a edição. O que se seguiu foi um vai-vém de reescrita e reimpressão.

Vistas à distância de cem anos, as peripécias de Proust com o seu manuscrito por imprimir tiram uma gargalhada a Pedro Tamen. A incompreensão da obra era manifesta. Essa primeira leitura dos outros remete-o para a sua própria iniciação a Proust. Incompleta, também pouco compreensível. “Tinha lido muito mal antes de me decidir à tradução. Então li-a à lupa, cada palavra aumentada imensamente e tudo ganha uma dimensão enorme. Muitas vezes admiro-me de ter sido capaz daquela epopeia. Antes de me ter dado essa tarefa não calculei bem a sua enormidade. Quando terminei quase não acreditava. Muitos amigos podem testemunhar que vivi pelo menos durante um ano o que se pode chamar de depressão pós-parto.”

Como convencer, então, o leitor actual a entrar na aventura de ler três mil páginas? “Embarcar na leitura da Recherche compara-se a um desporto radical. Nada fica como antes para quem tiver fôlego.”

O mundo iniciado em Do Lado de Swann e concluído em O Tempo Reencontrado, 17 anos depois, havia sido esboçado logo no verão de 1909. O tempo passado no Grand Hotel de Cabourg fora produtivo. Havia mais de 200 páginas e Proust não resistiu a mostrá-las a dois amigos. Chamou-lhe Combray. Citati resume o universo nele contido, remetendo para o seu livro. Lá estavam “as noites de insónia, a lanterna mágica, Swann, o beijo de boas-noites, a tia Léonie, a igreja puída pelos capotes e pelas mãos dos camponeses, Françoise, a criada que se parecia com a caridade de Giotto, o rio e as flores aquáticas, e todas as recordações e as imagens ocultas na chávena de chá, como aqueles pedaços de papel japoneses que, mal se mergulham na água, se transformam em flores, barcos, personagens”. O que a Proust parecia já quase um fim para o qual faltava pouco tempo, revelava-se apenas o início que terminaria com 200 personagens, quase todas a parodiar figuras da alta sociedade francesa, escritores, intelectuais, artistas, lugares que Proust frequentava nos intervalos do seu auto-exílio criativo e existencial… E cerca de três mil páginas.

Em 1913 ele ainda não sabia dessa contabilidade. Fazia contas ao que iria gastar com a publicação do volume. Cerca de nove mil euros às contas actuais. Não previra a recusa da publicação do que planeara ser o primeiro volume de um tríptico para o qual já antevira um fim. “A ideia do fim veio em simultâneo com o delírio que provocou o arranque”, afirma Pietro Citati. “Quando começou a escrever teve a noção de que o romance deveria ser uma iluminação total sobre o passado e essa luz viria no fim, no Tempo Reencontrado”. O ciclo, um princípio e um fim. Faltava traçar-lhe a curva.

Logo a seguir à publicação de Do Lado de Swann, Proust voltava a falar da sua catedral literária, negava a ideia de ser escravo do estilo a que o conteúdo teria se submeter e esclarecia, que o seu projecto se explicava justamente aí, no estilo. “O estilo explica”, dizia ao jornal Le Temps. É no estilo que se revela ou dá a conhecer o universo particular, singular em relação a outro. E que a condição de um artista não era outra que não a de conseguir dar a conhecer um universo além. A tal língua estrangeira?

Há quem lhe aponte falhas na obra, uma intenção de terminar, acrescentar, modificar, reescrever (uma fixação, o método era esse) que a morte, ocorrida a 18 de Novembro de 1922, nove anos após a publicação de Do Lado de Swann, não terá permitido. A este propósito, Pedro Tamen lembra uma carta de Proust a Celeste Albaret que o ajudou a dactilografar parte do livro. Dizia-lhe que tinha escrito a palavra “fim” e estava feliz. Por essa altura recebera o Goncourt, em 1919, com À Sombra das Raparigas em Flor, o II volume da sua Recherche, já com a chancela da Gallimard e o aplauso de Gide. Mas não há unanimismos. Nem em Proust. Céline considerava-o doente, Louis Arragon, um snob, e como lembra a edição especial do Le Monde dedicada a este centenário, Julien Gracq acusava-o de prestar atenção apenas aos ricos. Marcel Proust terminou o livro e morreu vítima de uma pneumonia. Sozinho, em casa. Man Ray fixou essa expressão final. O tempo da Recherche decorreu entre 1870 e 1920. O da vida de Proust entre 1871 e 1922. “O tempo da obra fechou-se”, conclui Pedro Tamen. “O Tempo Reencontrado é o encerramento. Os personagens resolvem-se ali e o narrador, ao tropeçar na pedra ao entrar na festa de Guermantes, revive-se e descobre-se como escritor. Vê a possibilidade de ao recuperar a escrita, recuperar o tempo”.

A “cúpula”, como lhe chama ainda Tamen, fecha-se nas derradeiras palavras da Recherche: “… Ao menos se as tais forças me fossem concedidas pelo tempo suficiente para realizar a minha obra, não deixaria acima de tudo de descrever nela os homens, ainda que tal os fizesse parecerem-se com uns seres monstruosos, uns seres que ocupam um lugar tão considerável comparado com o tão restrito lugar que lhes está reservado no espaço, um lugar de facto desmedidamente prolongado, visto que, como gigantes imersos nos anos, eles atingem simultaneamente épocas tão distantes, entre as quais tantos dias ocuparam o seu lugar. No Tempo.”

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