Esta cidade não é para arquitectos, é para todos

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As crianças brincam às escondidas numa cidade de ar carregado de bits e bytes. Robots cosem o tecido cultural entre gigantescas impressoras 3D e um supercomputador que é do mais natural que há — afinal, a natureza é programável, a biotecnologia de hoje é para meninos e a arquitectura está algures entre os escombros de um Dubai pós-petróleo e uma confusão pulsante na Índia.

Hambúrgueres de laboratório? Ratos que brilham no escuro? Paraísos de ar condicionado no deserto? O passo seguinte da arquitectura é o Futuro Perfeito, um dos quatro grandes programas da Trienal de Arquitectura de Lisboa - uma cidade onde podemos viver dentro do Museu da Electricidade. Partimos das tendências de um presente exagerado para um futuro imaginado à garupa das ferramentas e métodos dos videojogos, da ficção científica, dos filmes e dos comics. Podíamos viver ali?

Liam Young, arquitecto especulativo britânico, começou a trabalhar nesta cidade ficcional há mais de um ano. Chamou cientistas, autores de ficção científica, ilustradores e cenógrafos, “pessoas que nas suas vidas diárias estão directamente envolvidas em moldar aquilo em que o nosso mundo está prestes a tornar-se”, para criar o briefing e chamou-lhe Under Tomorrow’s Sky (UTS). Num fim-de-semana de Junho que podia ser uma convenção de geeks e colaboradores da revista Wired, foi concebida a cidade do futuro. Tem traços distópicos e um espírito utópico, nascida de tendências hoje emergentes no urbanismo, na ciência e na cultura e foi mostrada ao público em 2012 na Semana de Design Holandesa.

Depois, continuaram a trabalhar, construindo modelos que ocupam salões – “trabalhámos com artistas de efeitos especiais que trabalharam em Blade Runner ou Alien”, diz –, escrevendo narrativas, fazendo filmes, pintando ideias. Fez-se um zoom a UTS e vemos cinco bairros. Vemos Futuro Perfeito.

O grupo tentou livrar-se de Philip K. Dick, dos comics pós-apocalípticos ou dos clássicos Orwellianos que ensopam a nossa cultura. E também se livrou dos arquitectos. Esta é uma exposição-chave da Trienal, mas esta cidade não é (só) para arquitectos. Numa altura em que a profissão perde a sua influência, diz o especulador britânico, e numa trienal sob o tema Close, Closer que quer saber o que é a prática da arquitectura hoje, este é um dos novos territórios da disciplina. Um terreno acidentado - até nos dão uma lanterna à entrada - e imersivo. “Podemos deitar-nos sob uma árvore numa selva [de realidade] aumentada e ler um livro, podemos vaguear pelo cérebro do supercomputador da cidade, podemos ver o filme da nossa cidade durante horas sem fim.” E vê-la crescer com os robots e as impressoras 3D, mas através das visitas de alguns dos seus criadores e de um ebook com contos da cidade.

Bruce Sterling, um dos definidores da cultura cyberpunk, e Tim Maughan, também autor de sci-fi, Bart Hess, designer e artista anatómico que já criou peças para Lady Gaga, ou Warren Ellis, escriba de graphic novels como Transmetropolitan ou de histórias que resultaram em filmes como Red ou Homem de Ferro 3, além dos estúdios Factory Fifteen e Marshmallow Laser Feast, são alguns dos artífices do Futuro Perfeito. Que “não é fantasia pura. Não é um céu cheio de estrelas e naves tipo Guerra das Estrelas, com feixes laser e raios lunares. É um exagero do presente e não uma especulação de um futuro distante”, avisa Young.



O que espera que as pessoas levem deste lugar futuro, deste mergulho num filme que ainda não vimos mas que em parte já conhecemos?

O futuro não é algo que nos banha como água. O futuro é um verbo, não um substantivo, é algo que todos fazemos. O que tentamos fazer com Futuro Perfeito é tornar o público um agente mais activo, apresentando-lhes ideias de ponta na ciência e tecnologia de uma maneira habitável. Futuro Perfeito e projectos especulativos como este são lançar cenários para permitir que o público decida quais são cheios de medo e quais são cheios de esperança. Espero que algumas pessoas fiquem chocadas e com medo. Espero que algumas se apaixonem.

O que é que estas cidades do futuro dizem sobre as cidades do presente? Há referências à febre de construção no Dubai...

O grande mal entendido sobre a ficção científica é que trata de previsões. A previsão é o subproduto da ficção científica – às vezes acontece. Mas na realidade [e veja-se], 1984, o clássico de Orwell é sobre 1948. O facto de mais tarde se ter tornado verdade, com o Estado de vigilância e a Fox News, é só uma coincidência ou um subproduto. E é isso que penso sobre Futuro Perfeito: é uma forma de compreender o nosso mundo de novas maneiras.

Por isso olhámos para as novas formas de cidade que emergem em sítios como o Dubai, onde no meio do deserto se cria uma cidade do nada. Trazem arquitectos internacionais, mão-de-obra imigrante da Índia e constroem uma cidade gigante - e enchem aquela merda de ar condicionado, porque não há razão para uma cidade viver num contexto destes. Ou na China, onde há tanto crescimento que é preciso gastar o dinheiro e simplesmente constroem cidades-fantasmas para ninguém.

As cidades estão a nascer assim e por isso a nossa cidade simplesmente cresce, como uma ilha artificial, como a ilha do Dubai. Cresce nas sombras das ruínas do Dubai, quando o mercado colapsa quando o petróleo acaba. Esta é a nova forma de cidade, construída sobre uma nova economia - uma economia de biologia e não de petróleo.

Também foram à Índia filmar - o que trouxeram do presente indiano para o futuro das cidades?

Blade Runner (1982) aconteceu durante o boom da electrónica pessoal e quando todos pensavam que o Japão ia ser uma superpotência. As paisagens da cidade de Blade Runner eram um híbrido de Los Angeles e Tóquio - o que nunca aconteceu. Agora olhamos para a Índia, que vive um enorme crescimento, populacional e nas tecnologias da informação, e pensamos que vai ser a próxima superpotência. Por isso a nossa cidade é informada por Bollywood, pela cultura hindi, é um híbrido de Bombaim, Bollywood e uma cidade europeia. O filme [de Futuro Perfeito] foi filmado na Índia, com efeitos especiais para a tornar na Índia do futuro.

Depois da falência dos combustíveis fósseis, uma nova economia da biologia. Como é que muda a paisagem deste futuro?

Já não há natureza, as fronteiras entre a natureza e a tecnologia desapareceram. Pensámos em como uma natureza manipulada se infiltra na nossa cidade e as cidades deixam de ser só construídas para serem cultivadas, e todas as superfícies se cobrem de musgo e de vida vegetal. A cidade respira como nós. Isso tornou-se numa instalação dos artistas de biotecnologia Revital Cohen & Tuur Van Balen, que estão a criar uma nova espécie de mirtilo que se torne um medicamento - e isto não é ficção. Olhámos também para a forma como crescem os bairros pobres na Índia, sem planeamento, como as favelas no Rio, que crescem organicamente. A nossa cidade cresce da mesma maneira, não há um grande designer, simplesmente emerge como uma floresta.

Haverá uma pobreza que se desenvolve horizontalmente nas franjas desta cidade futura, e um centro de megacidade vertical, como no cânone séc. XX do que simboliza a ligação entre arquitectura e progresso?

A escala desta cidade não tem a ver com a altura. A cidade torna-se indistinguível da geologia, abraça o relevo. Olhamos para uma montanha e na verdade estamos a ver uma cidade, de perto está cheia de janelas e escadas e é um edifício vivo. Quando visualizamos a silhueta da nossa cidade futura é muito mais próxima de uma cordilheira do que dos arranha-céus de Hong Kong. Tem uma verticalidade, mas ao mesmo tempo é como paisagem. E vemos isso nas favelas do Brasil, que trepam pela superfície do morro. Têm verticalidade, mas só um andar. Há uma relação directa entre a formação da cidade e a pobreza - talvez seja cínico, mas se o mundo vai mudar fundamentalmente, nós não vamos mudar. E haverá sempre pessoas que exploram o sistema e pessoas que levam uma tareia dele. A nossa cidade não é uma utopia em que todos serão iguais. O nosso exagerar do presente pode levar a disparidades mais profundas, o que não é ideal mas a cidade aceita certas inevitabilidades sobre a cultura humana, joga com elas e explora o que podem significar à luz de novas tecnologias - que podem ser mal usadas e que não vão resolver os nossos problemas.

No seu brainstorm, pareciam mais inclinados para o optimismo de uma utopia do que para uma distopia - que provavelmente é a imagética mais forte das cidades do futuro. Mas já avisou que esta não é uma utopia…

Há uma tradição espantosa de cidades do futuro que aponta para os medos e ansiedades dos tempos em que foram feitas. Recentemente passámos por uma série de filmes de ficção científica sobre a natureza descontrolada - O Dia Depois de Amanhã, Armaggedon - porque era a altura das alterações climáticas; nos anos 1950 era tudo sobre invasões alienígenas, que na verdade eram sobre o medo da ameaça vermelha, da União Soviética. Agora há uma nova fornada de filmes sobre alienígenas, que são sobre “os outros”, o terrorismo, o racismo. Quisemos contribuir e ser parte desta linhagem, mas hoje é muito mais fácil imaginar uma distopia do que uma utopia. Num estado de crise, o pessimista está morto. Não vai chegar muito longe. Temos de ser optimistas para que as pessoas possam ficar entusiasmadas com o futuro, é assim que as envolvemos. Espero que seja uma cidade encantadora, mas também está repleta das nossas contradições. Não quisemos fazer mais uma cidade ensopada em chuva, iluminada com neones e numa noite permanente.

Já falou de Blade Runner: que cidades futuras passadas mais surgiram nos vossos debates?

É difícil afastarmo-nos de Blade Runner, é tão icónico e definiu a história da ficção científica desde então, mas tentámos algo completamente diferente. Falámos das cidades especulativas ao longo da história da arquitectura - os metabolistas japoneses nos anos 1960/70, por exemplo, que imaginavam cidades cápsula que cresciam peça a peça. Mas tentámos não as referenciar, algo que desse a sensação de que já tinha sido visto. A nossa cidade não é entretenimento, vender lugares e pipocas. A forma da cidade actual já está a mudar fundamentalmente, graças à forma como falamos ao telemóvel ou nos localizamos através do GPS. Isso muda a forma como nos movemos nas cidades ou como [as vivemos]: estou no meu apartamento e não sei quem são os meus vizinhos, mas estou a falar com os meus amigos no Facebook ou no Twitter que estão espalhados pelo mundo - essa é a minha experiência de uma cidade.

Houve cidades inventadas do zero no século XX e que também podem ter parecido do futuro no seu tempo. De que forma surgiram no vosso processo e o que dizem sobre uma forma de fazer arquitectura?

As cidades do zero são cidades que simplesmente acontecem, por oposição a cidades que crescem ao longo de milhares de anos, que começam como uma aldeia no rio... Queríamos que a nossa cidade crescesse ao longo de uma história acelerada. Não é uma cidade Niemeyer em que se põe um dedo num mapa e se criam estradas, um plano, e depois se começa a construir. A nossa cidade cresce de uma semente e, como uma planta, ou uma floresta, começa a tomar conta da paisagem. E não há um plano-director. Foi aí que começámos a criticar essas cidades planeadas. Nunca tiveram a vida de uma cidade que cresceu organicamente, nunca têm a sua intimidade ou história. Por isso embebemos a nossa cidade da história do seu crescimento - é muito mais como uma favela informal indiana do que Chandigarh, a cidade planeada de Le Corbusier na Índia.

Como é que acha que os arquitectos vão encarar este exercício prospectivo sobre a sua profissão?

Para ser honesto, não me preocupo com o que os arquitectos pensam sobre isto. Porque não é feito para eles. Todo o foco deste projecto é pegar nas ideias sobre o que são e devem ser as cidades e pô-las no domínio do público que nunca vai a conferências de arquitectura nem à Trienal, que não sabe quem é Le Corbusier, Rem Koolhaas ou Oscar Niemeyer. Por isso é que estamos a usar formas do cinema, dos comics, dos livros, ficções. Porque a ficção é um meio partilhado espantoso, é como as ideias são disseminadas e estamos a tentar comunicar ideias muito complexas de urbanismo, arquitectura, tecnologia e filosofia de uma forma que não amedronte as pessoas. Para que possam perguntar-se se gostariam de viver ali. Por isso, não quero saber dos arquitectos.

Com essa missão tão clara, como é que uma pessoa se torna num arquitecto especulativo?

Ainda há um lugar para os arquitectos no sentido tradicional mas as forças que moldam as nossas cidades já não pertencem ao domínio dos arquitectos - as infra-estruturas permanentes (edifícios, estradas, parques) que eram o seu trabalho já não são o motor das cidades. Agora são movidas pela tecnologia, pelas ligações, por redes, por infra-estruturas soft. A arquitectura especulativa é muito mais sobre trabalhar com sistemas do que com materiais.

Não tenho a certeza de como é que nos tornamos num [arquitecto especulativo], mas acho que temos de o ser. O arquitecto do futuro tem de responder ao conceito mais amplo da disciplina. O arquitecto especulativo tem de se tornar no arquitecto comum o quanto antes e o arquitecto tradicional tornar-se-á numa espécie de artesão de nicho. A especulação é absolutamente necessária porque é a única forma de os arquitectos recuperarem algum do poder de mudança. Estamos numa posição espantosa entre a tecnologia e a cultura e os projectos especulativos são uma forma de nos ligarmos ao maior número possível de pessoas.

A perda de poder dos arquitectos foi agravada pela recessão… e um dos escapes das crises é a ideia de que são alturas para redefinir objectivos.

Decididamente. Tornou a construção mais difícil, mas também é uma oportunidade extraordinária porque temos um momento para reflectir e para avaliar para onde vamos. Esquecemo-nos do futuro por uns tempos — pensámos muito nele nos anos 1960 e 70 e depois parámos. Com a economia a crescer interessámo-nos muito mais em fazer coisas e em superfícies e formas. E, esperemos, à medida que a economia colapsa a ideia do futuro pode tornar-se novamente num projecto.

A sua actividade e as suas ideias têm mais atenção nos últimos anos?

Há muito mais público. As cidades especulativas são muito excitantes e também muito assustadoras, mas queremos que nos dêem pistas. Antes as coisas eram mais certas. Agora são uma ampla paisagem aberta. O projecto especulativo é um guia por essa paisagem e quanto mais cenários tivermos, mas navegável ela se torna. E podemos começar a tramar a nossa rota. 

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