Cildo Meireles quer o espectador por inteiro

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Cildo Meireles nasceu em 1948, no Rio de Janeiro. Uma origem que não o transforma no típico herdeiro dos artista neo-concretos, como Pape ou Oiticica, mas que lhe confere a posição privilegiada de ter assistido e vivido o momento em que história da arte brasileira foi reescrita. Como artista, sente-se no cruzamento entre essa forte linguagem artística vinda do sul e a muito famosa pop-arte americana, os ready-made de Duchamp e a impertinência, conceptual, de Piero Manzoni pai da “merda d’artista”.

Este artista brasileiro tem desenvolvido uma obra caracterizada por uma enorme diversidade em que o desenho, com o seu rigor e imediatez quase pré-racional, está sempre presente. Mas a face mais visível da sua obra são os grandes dispositivos e instalações em que o espectador é implicado e é um elemento de tal modo determinante na construção do mecanismo artístico proposto pelo artista que, sem ele, a obra não existe.

Todas as suas peças têm um intenso ingrediente político, mas que não esgota o seu sentido e potência plástica. Muitas delas são atentas observações sobre a organização do mundo e o lugar que o homem ocupa nesse grande universo do dinheiro e das instituições, do consumo e da produção em massa. E guia-o uma ética artística em que o valor central é dado pelo respeito pela singularidade e individualidade de cada um. Um dos seus pensamentos mais recorrentes é a necessidade de aprender a tornar-se pequeno: só através da redução poderemos sobreviver, ou seja, só na medida em que o homem aprenda a ficar tão minúsculo como uma formiga poderá sobreviver. Uma imensa metáfora para falar da sociedade pós-industrial e da insatisfação humana num mundo caracterizado pelo progresso, crescimento e desenvolvimento.

A sua zona de trabalho preferida é aquela em que não se consegue bem distinguir entre o que é arte e o que não o é. E muitas das suas obras inscrevem-se nesta espécie de zona de perigo e transformação, mas é a permanência nesta zona que lhe permite dar resposta à sua grande aspiração de tentar a imaterialidade e a invisibilidade, como diz ao Ípsilon. Não se trata de desconfiar da matéria e dos corpos, mas é a imaterialidade que expressa a condição política, enquanto ideia e utopia, que lhe interessa. Ideias que não usam obras de arte como ilustrações, antes se servem da arte para pensar o indivíduo e reflectir sobre a sua condição de habitante da terra. Neste sentido, pode dizer-se que a sua obra é uma reflexão, política, filosófica e existencial, sobre as imensas possibilidades que a vida permite e que Cildo Meireles explora intensamente, não como quem explora um argumento, mas através da convocação da totalidade dos sentidos humanos. Por isso, as suas obras não são só para ser vistas, mas convocam a totalidade do espectador: querem-no por inteiro.

Já expôs nos museus mais importantes do mundo como o MOMA em Nova Iorque (1999) ou a Tate Modern em Londres (2008). A exposição que hoje abre ao público no Museu de Serralves, no Porto, foi programada e comissariada pelo antigo director deste museu, João Fernandes, e é uma adaptação da exposição apresentada em Madrid no Palácio Velázquez que também a co-produziu. Nesta versão portuguesa vão poder-se ver obras inéditas como a impressionante instalação Nós, as formigas. Uma obra que nos anos 1970 atingiu o artista como um raio perturbador e que só agora pode ser concretizada. Cildo Meireles falou com o Ípsilon sobre a exposição e sobre a maneira como também as obras de arte possuem biografias variadas, às vezes contraditórias e quase sempre inexplicáveis.



Esta não é a sua primeira exposição em Serralves?

Neste museu já participei em exposições colectivas, mas em 1996 o Vicente Todoli mostrou uma exposição minha na Casa de Serralves que tinha vindo do Instituto Valenciano de Arte Moderna (IVAM). E fiquei sempre com muita vontade de voltar, porque este é o meu lugar de Portugal. A Lisboa vou muitas vezes por muito pouco tempo e estou sempre a voltar e a ficar no Porto por alguma razão forte.

Mas foi João Fernandes o responsável pelas suas sucessivas vindas ao Porto?

Em 1995 o João Fernandes foi a Valência e quis trazer a exposição que eu estava a fazer. E o Vicente Todoli, que na altura ainda estava no IVAM [Todoli foi director do Museu de Serralves entre 1996 e 2002], conseguiu reter a exposição e esperar que ela viesse para o Porto, para a antiga Casa de Serralves. Já na Casa de Serralves no primeiro dia de montagem tivemos de a interromper porque havia uma cerimónia oficial com muita pompa em que o Tapiés foi condecorado e o arquitecto Álvaro Siza fez a primeira apresentação pública da maqueta do museu. Uma série de coincidências que me ligam de uma maneira muito forte ao Porto e a Serralves.

Nessa altura, estava longe de pensar que iria fazer uma exposição no novo museu de Siza?

Sim, totalmente. A possibilidade desta exposição só surgiu em 2006 quando o João Fernandes foi a São Paulo e me convidou. Nessa altura já tinha marcado uma exposição para a Tate Modern em Londres para 2008 e, por isso, combinámos fazer esta exposição só depois dessa. Em 2008 ganhei o prémio Velázquez de Artes Plásticas, o que implicaria fazer uma exposição no Museu Reina Sofia em Madrid. Era claro para mim que não queria estar a fazer mais duas exposições grandes e acordei com o João Fernandes que era a exposição de Serralves que iria para Madrid. Mas em 2011 ou 2012, já não me lembro bem, fui com o João a Madrid com a lista final de trabalhos e percebi que o Reina Sofia não era o espaço indicado. O museu está instalado numa antiga enfermaria, com corredores largos por causa das macas, mas as salas são muito estreitas e este espaço era impossível para as obras que eu queria mostrar. Nesse ano, o Palácio Velásquez tinha sido remodelado e voltado à sua forma original, fomos lá e ficou evidente que tinha de ser ali porque aquela era a escala indicada e a luz natural era muito boa para as minhas peças de grande escala.

Precisa sempre de muita escala?

Para alguns trabalhos não, como por exemplo para os meu desenhos em papel milimétrico, mas para esta exposição é muito importante. Ainda que um dos projectos para esta exposição, que espero estar pronto antes da inauguração, é fazer o desenho mais pequeno de sempre, um desenho quase invisível: quero fixar uma molécula de grafite sobre papel. Um projecto a princípio quase impossível, mas com a ajuda de um físico da Universidade de Braga e com a descoberta que ele fez de uma molécula chamada grafeno vai ser possível fixar uma molécula bidimensional de grafite sobre papel e fazer o desenho mais pequeno que existe.

Todos os seus trabalhos têm esta componente de investigação?

Não. Há alguns que já nascem prontos e que antes de existirem foram sonhados. Cada trabalho tem a sua própria biografia e singularidade. Por exemplo, uma das obras apresentadas aqui que chama-se Para Pedro (1984/1993) e surgiu na altura em que nasceu o meu filho mais velho que se chama Pedro. Nessa altura ele já estava a tomar uma mamadeira [biberão] à meia-noite e era eu que estava encarregue dessa tarefa. Uma noite esqueci-me da mamadeira no fogão a aquecer porque adormeci a ver televisão. Isto relaciona-se com outra história: no começo dos anos 1980 fui à Colômbia e fui visitar uma cerâmica no meio das rochas, quase uma caverna, e havia um grupo de mais de 40 mulheres a raspar cerâmicas num barulho contínuo. Nesse dia, à meia-noite, quando acordei com a mamadeira do meu filho a derreter no fogo, o barulho da televisão sem emissão, voltei a ouvir o mesmo som das cavernas das ceramistas da Colômbia. A associação destas coisas acabou por resultar nesta obra com televisores, superfícies contínuas e brita no chão.

Trabalha muitas vezes com som. O que é que o atrai nessa matéria?

A possibilidade de estar a trabalhar com um elemento que não é estritamente visual. Por exemplo, em inglês existe a expressão “visual arts” [artes visuais], mas esta designação não exprime o universo de questões que são abordadas pelos artistas. Prefiro dizer artes plásticas. E o som possibilita uma leitura não visual da arte. Para mim, isso é muito interessante. É verdade que a arte brasileira depois dos anos 1950-1960 se começou a interessar muito por este tipo de abordagens ao objecto plástico. Nesta altura já havia vontade de usar na experiência plástica outros sentidos que não só a visão. E a arte brasileira coloca esta questão do multi-sensorialismo. Para mim trata-se de pensar um objecto tentando que ele seja muitas coisas ao mesmo tempo: escultura, instalação, possibilitando que ele tenha uma existência auditiva, olfactiva, etc.

Mas a utilização do som, além de permitir aprofundar essas noções de obra de arte, é muito imaterial e invisível. E em alguns dos seus trabalhos usa materiais que desaparecem como a água ou o vento. Tem muitas obras em que as presenças imateriais são importantes.

Sim, algumas e todas têm como fundo um texto que li e que me marcou muito por ter sido antecipatório para o neo-concretismo e que foi a Teoria do Não-Objecto do Ferreira Gullar [texto publicado no Jornal do Brasil como contribuição para a II Exposição Neoconcreta, realizada no salão de exposição do Palácio da Cultura, Estado da Guanabara, em 1960, e que defende uma ideia da obra de arte como pura aparência: “um corpo transparente ao conhecimento fenomenológico, integralmente perceptível, que se dá à percepção sem deixar resto”]. E foi com este texto em mente que fiz a obra para a Dokumenta de Kassel em 2002 e que o João Fernandes apresentou em Portugal no Allgarve. Essa obra, chamada Elemento Desaparecendo/Elemento Desaparecido (passado iminente) [conjunto de carrinhos de venda de gelados de gelo], vem de uma coisa que vi numa estação de autocarros: uma quantidade enorme de carrinhos de garotos a vender picolés [gelados de gelo com sabor a fruta]. Mas fiquei intrigado porque havia mais de 20 carros e uma tabela com, pelos menos, três preços diferentes. Fui ter com um dos garotos para perguntar a razão da diferença de preços. Ele disse-me que os mais caros são os cremosos que são feitos com leite, os outros são só fruta e água e depois os mais baratos são só água. Este trabalho é uma versão das Inserções em Circuitos Antropológicos que fiz em 1971. Estas Inserções são possibilidades de actuação e circulação da arte não no meio da economia ou do consumo, mas no contexto da vida. Mas há mais obras aqui em Serralves a lidar com as questões da invisibilidade que é Entrevendo (1970/1994), em que o espectador tem de pegar em dois cubos de gelo e mete-los na boca enquanto entra num túnel de madeira para onde são direccionadas duas colunas de ar, uma quente e outra fria. Deixar o gelo derreter na boca e tentar perceber as diferenças entre os cubos é a única possibilidade para tentar apreender esta coisa invisível que é o vento.

Interessa-lhe combater a ideia da obra de arte como objecto?

Não é tanto um combate, mas mais uma aspiração a uma certa ideia de imaterialidade. A minha obra Inserções em Circuitos Ideológicos. Projecto Coca-Cola (1970) tratava disso, usando inscrições serigrafadas em garrafas de coca-cola com nomes de pessoas mortas ou reflexões sobre o papel da obra de arte. Estas garrafas, no contexto da produção industrial, eram devolvidas e voltavam a circular no mercado de consumo. Não se trata de uma edição, nem de uma tiragem ou de um múltiplo: as garrafas que agora vemos no museu são só um resíduo longínquo do trabalho. Essa obra só existe quando alguém a estiver a fazer no contexto da vida quotidiana. E fascina-me a possibilidade de alguma coisa ser e, ao mesmo tempo, não ser arte.

Se lhe interessa tanto essa imaterialidade e o aspecto de acção, porque é que nunca fez performance?

Eu fui para artes plásticas porque detesto dar a cara. Subir para um palco é uma coisa heróica de que não sou capaz. É como com as palavras. Tenho terror e respeito pelas palavras e, por isso, não escrevo. É que não se pode despublicar, pode-se destruir um desenho, uma pintura ou uma escultura, mas um texto depois de publicado não há nada a fazer. E esta consciência paraliza-me.

Essas suas Inserções não são totalmente diluídas no meio do quotidiano?

Durante anos elas existiram assim. O projecto Inserção em Circuitos Ideológicos 2. Projecto Cédulas (1975) só existia enquanto as notas onde eu gravava frases continuassem a circular no espaço institucional da banca e do mundo do dinheiro. Esta Inserção foi ainda mais radical porque as garrafas de Coca-Cola têm uma tradição na história da arte que as torna insuspeitas, mas mexer com dinheiro era outra coisa. Este é um trabalho sobre a produção, distribuição e controlo da informação. Durante muitos anos estas obras só existiam enquanto eu as ia fazendo e devolvendo aos seus circuitos habituais. Nunca vendi e só dei alguns exemplares a uns poucos amigos e, quando havia museus que as queriam, fiz doações. As pessoas continuaram a desenvolver estes trabalhos ao dar-lhes uso. A ideia era dar a possibilidade a cada indivíduo de actuar nas macro-estruturas industriais e institucionais.

Uma espécie de prolongamento da vida da obra na vida das pessoas.

É isso. É dar voz ao indivíduo face às grandes estruturas. E durante muito tempo não quis ter nada a ver com a arte, só me interessava o indivíduo.

Muitas das suas obras são grandes dispositivos onde o espectador tem de entrar e onde se torna uma espécie de criador da obra porque é ele que, de certa forma, lhe dá vida. Esta necessidade de convocar o espectador para o interior das suas obras é um prolongamento do envolvimento do espectador?

Não é bem a mesma coisa. Mas é verdade que as Inserções me deram uma espécie de chave que tenho vindo a desenvolver para encarar a produção de arte. Em rigor, tudo é inserção num circuito: insere-se tinta numa tela, grafite num papel. Esta descoberta provocou-me uma enorme crise à Rimbaud. Na altura parei de desenhar e fui para Nova Iorque. Fui parar a uma aula livre de arte, onde aprendi, com um professor maravilhoso, que todo o artista devia fazer a sua obra mais importante em cerâmica. Porque só a cerâmica iria resistir a um ataque nuclear: isso era evidente porque tudo o que conhecíamos do passado era a partir de fragmentos de cerâmica. São estas pequenas histórias que me interessam.

Portanto, as suas Inserções puseram-no num impasse.

Sim, o qual só consegui ultrapassar com as instalações de grande escala em que o espectador fica totalmente envolvido. Ao contrário das Inserções, comecei a precisar de grande escala, mas mantive sempre a ideia de que as diferentes obras eram feitas para uma pessoa de cada vez.

Para voltarmos ao Brasil e à arte brasileira. Como é ser herdeiro dos artistas neo-concretos brasileiros e desses artistas tão importantes como a Lygia Pape, Lygia Clark ou o Hélio Oiticica?

O Brasil teve de criar a sua própria história das artes plásticas, o que não aconteceu no modernismo, mas só nos anos posteriores a 1950 e com esses artistas. Dessa forma, não tenho como não ser herdeiro deles. Reconheço ter tido o imenso privilégio de conviver, em primeira mão, com as suas construções: fui à inauguração da exposição de Lygia Clark, em que ela mostrou a inesquecível instalação A Casa é o Corpo em 1968, e fui ver a primeira exposição Tropicalia de Oiticica. Pude conviver com isto e com a Pop Art da cena internacional. E isto foi um privilégio. A importância do corpo e da sua tematização, em conjunto com o plurisensualismo, foi a grande lição que tomei destes artistas. Mas depois há aspectos fundamentais em que me sinto mais próximo de artistas como Marcel Duchamp ou Pierro Manzoni.

O seu trabalho parece ter dois pólos contrários. Um aspecto muito formal e geométrico e outro muito interventivo, político, militante. Como é que articula estas duas realidades?

Os meus desenhos são sempre sobre situações sócio-politicas.

Começa sempre com desenhos?

Sim, a minha formação é em desenho. Mas deixaram de caber no desenho todas as coisas de que queria falar. E a forma que encontrei de dar uma ordem a tudo o que ia na minha cabeça foi com os Espaços Virtuais. Que são uma espécie de exercício básico de geometria euclideana a que se juntou um episódio da minha infância: um dia deitei-me depois do almoço e fiquei totalmente paralisado, queria mexer-me e não conseguia. Subitamente, comecei a ver uma mulher a levitar nos pés da cama onde eu estava deitado, eu comecei a rezar e ela afastou-se. A junção do exercício euclidiano com esta imagem projectada deu origem aos espaços virtuais que comecei a fazer nessa altura.

Quando é que decidiu desenvolver o seu trabalho em torno das questões políticas que tão fortemente o marcam?

Não foi uma decisão, mas um conjunto de acontecimentos que me levaram a estas coisas políticas. Em 1969 eu participei numa exposição para escolher os artistas que iriam à Bienal de Jovens Artistas de Paris e fui indicado para a categoria de escultura. Quando a exposição no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro estava pronta, e pouco tempo antes da abertura ao público, o museu foi cercado pela polícia. O Coronel Montanha, que estava encarregue da operação de censura da exposição, foi ter com o director do museu e deu-lhe 3h para desmontarmos tudo. Durante tudo isto, o museu esteve sempre cercado pela policia militar. A intenção era acusar-nos de subversão. O processo não deu em nada, mas a exposição foi cancelada, o que deu origem a um boicote internacional de 10 anos à Bienal de São Paulo. A partir desta data, começaram a haver confrontos constantes e diários até ao fechamento total do regime e à suspensão total das liberdades e garantias individuais. Houve muitas manifestações em que eu participei, mas sempre como indivíduo, deixando o meu trabalho flutuar acima destas questões. A partir deste episódio percebi que era importante tratar destas questões no meu trabalho. A conotação política tornou-se mais evidente. Mas não se tratou de ser panfletário, porque para mim sempre foi certo que a arte tem de valer pelos seus conteúdos artísticos e não por outra coisa qualquer. O panfletário nunca resiste à história da arte, é sempre circunstancial.

Como é que essa política se dá nestas duas instalações que abrem a exposição em Serralves?

Olvido é um dos três projectos que fiz para uma exposição chamada Visão do Artista, uma exposição de comemoração de aniversário da fundação do Rio Grande do Sul. Esta região tinha sido fundada pelos Jesuítas que levaram muito gado para lá e no momento que foram expulsos deixaram o gado, que se tornou selvagem. Mas os índios pegaram no gado e fizeram dele a base da economia local. Esta história pareceu-me uma boa junção dos poderes material, espiritual e da tragédia, por isso é que a instalação é feita por cinco toneladas de ossos de boi, 6 mil notas de países americanos, uma tenda indígena e 70 mil velas. A obra é uma equação muito directa de tudo isto. São matérias de símbolo. Em Amerikkka (1991/2013) é uma coisa muito directa: as balas apontadas aos ovos dizem tudo.

São duas situações muito directas em que não só as formas, mas como os materiais que usa nestas suas gigantes esculturas, evocam situações muito concretas da política.

Eu fui sempre muito associado à arte conceptual. E isso começou a chatear-me. Nada pior que ir para uma exposição ler textos de artistas que normalmente são fracos e pouco rigorosos. Os textos partem da coisa mais abstracta que é a palavra e tentam chegar à coisa mais concreta e sólida possível. As artes plásticas partem da coisa mais material e bruta, como o ferro, a madeira ou a pedra, e tenta-se chegar a uma coisa imaterial. Por aqui se vê que não existe coisa mais antagónica que literatura e artes plásticas. Também percebi que a arte estava a abrir mão desta coisa importante que é a sedução, ou seja, trabalhar com a beleza das coisas, a sua matéria. E por isso quis fazer coisas muito materiais.

Há outras obras que, mesmo não tendo esta ligação directa às questões políticas, se situam num campo antropológico e político. Estou a pensar em Nós, as formigas e Ocasião.

Na verdade a peça das formigas é dos anos 1990, mas aqui já não é feita com formigas porque elas hibernam durante o Inverno. Por isso vamos ter de fazer com térmitas. Foi graças a esta obra que descobri que a formiga é o animal com maior memória, mais ainda do que os elefantes. Para mim esta obra tem mais que ver com filosofia do que com política e começou com uma ideia que não sei bem descrever. Uma ideia que foi uma espécie que raio que passou e que me perturbou. Lá pelos anos 1970 passou-me pela cabeça que, se um asteroide chocasse fatalmente com a Terra, ele destruiria as coisas grandes, mas não as coisas pequenas. Esta ideia da importância do pequeno tem expressão numa história que me parece interessante e se relaciona com a do asteroide: nos anos 1970, a Rússia, inimigo mais provável dos EUA, tinha gasto 23 biliões de dólares com defesa, mas nesse mesmo ano os EUA tinham gasto 325 biliões. Os terroristas da Al-Qaeda só precisaram de 16 bilhetes de avião para derrubar as duas torres e provocar todo aquele caos. Para voltar à minha peça: ela tem a ver com uma crítica a essa ideia corrente do investimento do capitalismo industrial no grande e no crescimento incessante e infinito. A minha obra é um confronto com a nossa finitude. Na verdade, acredito que a nossa chance de sobrevivência é tornarmo-nos cada vez mais pequenos.

E em Ocasião, que coloca os visitantes face à situação tentadora de poder levar dinheiro de uma sala vazia e aparentemente longe da vista de todos, mas em que depois se descobre uma outra sala com um espelho de vigilância através do qual se pode observar a sala oposta onde está o dinheiro?

Trata-se de uma reflexão sobre nós mesmos. É uma obra com uma natureza moral.

Mas a exposição acaba com uma instalação muito poética dedicada ao mar, à contemplação serena e harmoniosa, à poesia.

Foi sobretudo uma circunstância arquitectónica. 

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