Agora é Macbeth que entra em Kurt Cobain

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Susana Paiva

Há quatro seres contidos em duas personagens, e ao mesmo tempo dois universos fechados num só, nesta peça de Gerardjan Rijnders, nome cimeiro do teatro europeu contemporâneo, autor de várias peças e director artístico da mais importante companhia holandesa, a Toneelgrope Amsterdam.

Os medos do Macbeth de Shakespeare e as obsessões de Kurt Cobain, o vocalista dos Nirvana que se suicidou em 1994, fundem-se com os fantasmas das suas mulheres, Lady Macbeth e Courtney Love, num mundo de bruxas e veias cortadas.

Em Macbain, que Gerardjan Rijnders escreveu para Gonçalo Waddington e Carla Maciel, e que o casal de actores (também na vida real) cria e interpreta desde quarta-feira passada a domingo no Teatro Maria Matos, em Lisboa, o autor prolonga o tempo de vida que Rei e Rainha têm juntos, já depois de Macbeth cometer vários crimes; e aprofunda a dor de um homem e de uma mulher - um corroído pelo crime, outro pelo castigo - que se amam e ao mesmo tempo consomem pela contradição, pela insónia, pelos pesadelos e pelas drogas, sabendo (ou não) que esse é o caminho sem retorno para um abismo e para a morte.

Em Shakespeare, Macbeth e Lady Macbeth não voltam a estar juntos (IV e V Actos) depois do segundo encontro com as bruxas em que ele se vê estranhamente próximo da profecia de um dia vir a ser rei da Escócia e, ao mesmo tempo, tomado pelo medo e pela crença alucinada de que, para isso, terá de matar todos no seu caminho. Gerardjan Rijnders desafia esse desfecho e imagina como seria se o Rei e a Rainha voltassem a encontrar-se. Macbaincomeça então onde acaba a redenção - e quando se adivinha uma espiral que transfigura as personagens.

Talvez sozinhos não o fossem - mas, juntos, são monstros que entram no cérebro um do outro, e que se anulam. "Duas víboras numa gaiola", resume Gonçalo Waddington. Duas víboras que afinal também se amam, reforça Carla Maciel: "São movidos muito pelo amor que sentem um pelo outro."

O autor Gerardjan Rijnders quis "criar um retrato de um casamento atormentado" mas também "um retrato sobre aqueles no poder", escreve no programa da peça.

Seria crucial ter em palco um casal real para personificar esse retrato? "Não", diz em resposta às perguntas do Ípsilon. "Um actor deve ser capaz de representar qualquer papel." O dramaturgo concede porém que a condição de casal fora do palco pode ajudar a desprender dentro dele: "Quando estive em Lisboa para trabalhar na peça, constatei que o Gonçalo [Waddington] e a Carla [Maciel] quase não têm inibições e isso, sim, talvez seja por serem um casal na vida real."

Como em De Olhos Bem Fechados (1999), filme em que Stanley Kubrick juntou o casal de actores Tom Cruise e Nicole Kidman, a bagagem da intimidade pode ser material útil na criação desta descida aos infernos conjugal. Até porque o que se pretende, nesta peça, não é retratar Macbeth ou Cobain, Lady Macbeth ou Courtney Love, mas a sua intimidade.

"Há um entendimento que vai para além das palavras", salienta Gonçalo Waddington. E uma dureza no texto que leva os actores a interrogarem-se sobre "o que vem antes para acontecer aquilo" e "o que está depois". "É uma descoberta que nós próprios temos de fazer", diz.

No seu universo duro e cru muito próprio, Kurt Cobain e Courtney Love são dois seres "totalmente sozinhos e totalmente juntos contra o resto do mundo", diz Gerardjan Rijnders na breve entrevista por e-mail. O dramaturgo encontrou "por puro acaso" a biografia do músico - Heavier than Heaven, de Charles R. Cross - onde são citadas passagens dos seus diários: medos, obsessões e referências a Shakespeare, feitas pelo próprio Cobain.

Como Hamlet, Kurt Cobain tem de escolher entre a vida e a morte (pela droga). Dois meses antes de se suicidar, um médico diz-lhe que ele tinha dois caminhos possíveis: a vida (com uma necessária reabilitação) ou a droga, que o levaria a uma morte certa. "Tal como Hamlet?", interroga-se Cobain nos diários. "O Dr. Baker diz que, tal como Hamlet, tenho de escolher entre a vida e a morte. Eu escolho a morte."

É porém nos fantasmas de Macbeth que o dramaturgo holandês (que em 2001 encenou esse texto de Shakespeare, talvez um dos seus mais fundadores) encontra a ponte com Cobain. Estudiosos shakespeareanos interrogam-se como seria se Macbeth entrasse em Hamlet. Agora, "Macbeth entrou em Cobain", diz a actriz Carla Maciel.

Depois de Gerardjan Rijnders ler "sobre os seus pesadelos [de Cobain], as suas obsessões com bebés [talidomida], o seu desespero geral, o desespero dela", espantou-o "o muito em comum" que encontrou entre os dois casais. "O amor está em todo o lado, mas muitas vezes toma a forma de ódio e loucura", conclui.

Courtney e Cobain adoravam-se como dois iguais, ambos sobreviventes de uma infância que deixou marcas de desamor e rejeição ("Apenas nós os dois/ Dois órfãos que se adoptaram/ Há muito tempo atrás").

Nesta peça, e depois dos crimes, "ele volta para o quarto e os dois ficam numa espécie de consumo", diz Gonçalo Waddington. E ali permanecem, frios ("Ainda estou com frio/ Eu não sabia que um massacre/ Podia ser tão frio"), num espaço que não lhes pertence e que os oprime, como eram todos os quartos de hotel onde o casal Cobain-Love deixava vestígios de violência e autodestruição. "Eles próprios estão a tentar localizar-se no espaço e no tempo. Eles são quentes. Mas tudo o resto é frio", diz Gonçalo Waddington. "Eles não estão bem a habitar aquilo. Estão a habitar-se um ao outro."

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