Morreu Rui Valentim de Carvalho, pioneiro da indústria discográfica em Portugal
Rui Valentim de Carvalho conheceu Amália Rodrigues em 1948 e foi o seu editor histórico.
O velório será hoje entre as 18h e as 24h na Basílica da Estrela, em Lisboa, onde amanhã às 14h30 será realizada a missa que antecede a saída do funeral para o Cemitério dos Prazeres, também em Lisboa.
A editora com o nome da sua família, a Valentim de Carvalho, fundada pelo seu tio em 1914 na Rua da Assunção, na baixa de Lisboa, vendendo instrumentos musicais, gramofones e pautas de música, tornou-se em 1920 na primeira editora discográfica portuguesa, durante quatro décadas a distribuídora autorizada da EMI em Portugal.
Foi a fadista Maria Alice a primeira a gravar discos para a editora, que utilizava então como estúdio o Teatro Taborda. Só em 1963 é que a empresa inaugurou o novo estúdio em Paço de Arcos com instalações que foram então pioneiras na área - uma réplica dos míticos estúdios de Abbey Road, em Londres.
Entre os portugueses que gravaram em Paço D'Arcos destaca-se Amália Rodrigues (cuja primeira gravação com a Valentim de Carvalho foi feita precisamente nos estúdios da Abbey Road, em 1952) mas também artistas como António Variações, Carlos Paredes, Hermínia Silva, Lucília do Carmo, Max, Celeste Rodrigues, Maria Teresa de Noronha, Camané, Rui Veloso, Jorge de Palma e, mais recentemente, Os Pontos Negros ou Os Golpes, entre tantos outros.
Tim, como era conhecido pela família, amigos e colaboradores, "teve a vida toda uma relação muito forte com a Amália Rodrigues. Não era só uma relação profissional. A Amália era como se fosse da família", diz o historiador de arte José Sarmento de Matos, autor da biografia sobre o fundador da marca, Sons de Lisboa, uma biografia de Valentim de Carvalho.
O prestígio dos estúdios criados por Rui Valentim de Carvalho, com projecto de arquitectura de Conceição Silva assistido por Tomás Taveira e montados por técnicos ingleses, atraíram, no entanto, também a Portugal nomes internacionais como António Machin, Juan Manuel Serrat, Júlio Iglésia, Cliff Richard, os Shadows, Vinícios de Moraes e os Rolling Stones.
Em meados da década de 1960, Rui Valentim de Carvalho apaixona-se por Angola, acabando por ajudar a lançar nomes como os do Duo Ouro Negro, Elias Dia Kamuezo e Teta Lando, colaborando, já depois da independência, em gravações de Filipe Mukenga e Waldemar Bastos.
Rui Valentim Barbosa de Carvalho nasceu em Lisboa a 9 de Abril de 1931, filho do advogado Jacinto Barbosa de Carvalho e de Adelaide Carvalho, irmã mais nova do empresário Valentim de Carvalho. Perde a mãe muito cedo e é o tio "que vai acompanhar a educação dos cinco sobrinhos que viriam a suceder-lhe na direcção da empresa", segundo a biografica disponibilizada pela EMI-Valentim de Carvalho.
Rui Valentim de Carvalho, que frequentou o ensino técnico, começou a trabalhar cedo na Valentim de Carvalho: aos 13 anos já reparava aparelhos de rádio. "Uma grande atração pelos equipamentos de gravação e uma curiosidade pelas especificidades do som, depressa o levaram a trabalhar com o técnico Hugo Ribeiro nas sessões de gravação de música, dando início a uma colaboração que iria durar toda a sua vida", continua a biografia. Aos 15 anos, incentivado pelo tio que desde 1940 mantinha fortes relações empresariais com a EMI, passou uma longa temporada na companhia inglesa – nos estúdio, fábrica de discos e na loja da His Master’s Voice em Oxford Street – num contacto com os padrões de qualidade internacionais que o marcariam para sempre.
A relação com Amália
Nos anos 1960, foi com Rui Valentim de Carvalho que Amália voltou à Valentim de Carvalho, de onde saíra na década anterior para uma brevíssima passagem pela editora francesa Ducretet-Thomson (antes tinha gravado também com a Continental brasileira). "O Rui conseguiu sempre perceber muito bem a personalidade de Amália, o lado imprevisível e caprichoso que podia ter", recorda Rui Vieira Nery. Segundo o musicólogo, essa compreensão permitiu-lhe dar sempre à fadista "condições ideais" de trabalho nas longas sessões nocturnas de gravação nos estúdios de Paço D'Arcos, por ele fundados.
"Ele garantia que tudo estava no lugar para que ela apenas se preocupasse com o lado artístico em condições de grande liberdade. Amália começava e acabava à hora que queria e repetia as vezes que queria. Tinha carta-branca para a escolha de reportório, juntava os seus amigos... No fundo, ele permitia-lhe replicar um ambiente de tertúlia que fazia com que ela pudesse dar sempre o seu melhor sem pressão nenhuma empresarial."
Dos estúdios de Passo D'Arcos saíram os discos de Amália do período de grande renovação do fado em que este foi buscar os grandes poetas eruditos, recorda ainda Vieira Nery que fala numa "fixação afectiva enorme" do editor por Amália, uma "fixação quase religiosa". Foi Rui Valentim de Carvalho que apresentou David Mourão-Ferreira, seu amigo e cunhado, a Amália.
No Museu do Fado, em 2009, aquando dos dez anos da morte da fadista, foi organizada uma mostra de fotografias inéditas de Rui Valentim de Carvalho com Amália, numa homenagem à relação editor/artista. Esta mostra fotográfica, do espólio de Maria Nobre Franco, a mulher de Rui Valentim de Carvalho, ilustrava a cumplicidade entre os dois. “Uma parceria fundamental à construção de um vasto e admirável legado discográfico”, lia-se na apresentação da exposição, que integrou o ciclo Amália 2009, uma celebração da vida e obra da fadista.
Com Maria Nobre Franco, fundou nos anos 80 a Galeria Valentim de Carvalho, à época um dos poucos espaços da capital dedicados à arte contemporânea.
"Com o seu jeito tímido e discreto, Rui conheceu Amália em 1948. Ouvi-la já o emocionava. Falar-lhe, admirar a sua beleza e o seu talento, tornou-o grande admirador. O seu editor. O amigo incondicional que a acompanhou sempre. Até ao fim da sua vida", escreveu Maria Nobre Franco num texto para a exposição do Museu do Fado.
À Lusa, David Ferreira, sobrinho de Rui Valentim de Carvalho, destacou a "pessoa muito generosa" e o "homem de visão" que "tornou a Valentim de Carvalho na grande empresa de referência".
Camané lembra-se de Rui Valentim de Carvalho "como uma pessoa bastante simpática". "Há uns oito anos ele veio ter comigo, disse-me que gostava muito de mim e do meu trabalho e que gostava muito de me ouvir cantar um fado com poema de Ruy Belo, Uma vez que já tudo se perdeu. Na altura ainda estava bem, mais pouco depois foi-lhe diagnosticado Alzheimer", disse ao PÚBLICO o fadista, para quem Valentim de Carvalho "era um homem com uma grande sensibilidade, uma visão".
"A Valentim de Carvalho foi a editora que mais editou fado a partir de determinada altura. E fado de grande qualidade. A Amália, o Marceneiro, o João Braga, o João Ferreira-Rosa, a Maria Teresa de Noronha, a Hermínia. Havia uma certa elite fadista de qualidade que gravou na Valentim de Carvalho. O Carlos do Carmo gravou alguns discos lá. E o Carlos Paredes, é impressionante! Eles acompanharam muito a música portuguesa, desde a música popular ao fado, à canção de intervenção, ao pop e ao rock: Rui Veloso, UHF, GNR", acrescentou ainda Camané.
Doente desde meados da década passada, "o nome de Amália foi dos que mais tempo durou na sua memória", diz o comunicado da empresa.