Sobre o Tribunal Constitucional
Em primeiro lugar, o funcionamento da nossa democracia só teria a ganhar se a oposição política tivesse resistido a judicializar o processo legislativo, transferindo recorrentemente para a instância político-judicial a decisão final desse processo. Sobretudo no que respeita à execução do programa de ajustamento acordado com os credores oficiais. O TC acaba assim por ser excessivamente envolvido em escolhas dominantemente políticas e em cuja decisão acabam demasiado misturadas considerações jurídicas e políticas. De facto, fossem apenas objectivamente jurídicas as suas considerações e não teria havido opiniões divididas, quer no próprio tribunal, quer entre os mais reputados constitucionalistas.
Tornando-se assim recorrente uma intervenção concebida como excepcional, acaba o TC por ser transformado numa espécie de câmara alta parlamentar, ficando demasiado exposto a leituras de alinhamento político e fragilizando a percepção da sua independência. A prosseguir-se este caminho serão os próprios equilíbrios institucionais em que se fundou o regime, bem como a sua eficácia política, que poderão acabar em risco.
Obrigado - contra o seu próprio desejo? - a produzir uma tal sucessão de decisões, o Tribunal acaba por se tornar num interventivo decisor do processo de ajustamento. Originalidade que nos torna, aos olhos da comunidade internacional, habituada ao funcionamento mais "normal" dos processos democráticos, numa espécie de "aldeia gaulesa" (ainda que sem poção mágica...). E que tem dificultado desnecessariamente o nosso processo de ajustamento, sobretudo quando este é comparado com os de outros países em circunstâncias semelhantes, alguns dos quais bem mais violentos.
Mas o tribunal, por seu lado, também acabou por tornar a sua tarefa mais difícil de executar, mais facilmente alinhável em interpretações políticas e mais incentivadora do seu recorrente envolvimento no processo decisório em causa. Na verdade, as suas decisões têm-se baseado menos em normas positivamente prescritas na Constituição - e, como tal, susceptíveis de alteração - e muito mais na interpretação de princípios de natureza filosófica - igualdade, proporcionalidade, protecção da confiança, etc. - que, inscritos ou não na Constituição, serão sempre passíveis de invocação.
É que, tendo estes princípios uma razoável amplitude interpretativa, o tribunal poderia (deveria?) ter escolhido usar a amplitude que mais liberdade concedesse ao legislador. Não só porque, em geral, esta liberdade é fundamental para a dialéctica do processo democrático, mas porque, em particular, se vive uma excepcional situação de emergência financeira, um verdadeiro estado de necessidade, que requer decisões excepcionais.
Ao optar pelo estreitamento da amplitude interpretativa, não pôde deixar de explicitar demasiado preferências próprias dos seus membros, tornando-as demasiado condicionantes do espectro de preferências deixado livre à dialéctica das escolhas partidárias. De tal forma que muito pouco espaço de manobra é hoje deixado aos decisores políticos para que a sustentabilidade financeira do Estado possa ser assegurada por outro meio que não seja o aumento de impostos. Uma restrição assim imposta converte-se numa quase prescrição, o que, em última análise, se torna fortemente condicionante do processo democrático.
O TC pode argumentar que o legislador tem sido incompetente na fundamentação da necessidade das medidas que pretende pôr em vigor, pelo que, na ausência dessa fundamentação, se torna difícil ao tribunal aceitar as excepcionalidades com que é confrontado. Mas mesmo que essa incompetência seja provada, o tribunal dificilmente a pode invocar para aliviar a sua responsabilidade, pois que, contrariamente aos julgamentos dos outros tribunais, neste caso o tribunal julga sobre uma realidade na qual está completamente imerso e que, como tal, não pode ignorar. Como também não pode deixar de ter em devida conta as obrigações decorrentes dos tratados europeus.
Afinal, não é público e notório para todos que o país está sob intervenção dos credores oficiais por não ter conseguido assegurar, pelos seus meios, a sustentação financeira do Estado (ou da economia nacional como um todo)? E que Portugal ratificou, recentemente e por larga maioria, um tratado pelo qual se compromete a reduzir a dívida pública para 60% do PIB ao longo dos próximos cerca de 20 anos? E que reganhar autonomia decisória deverá ser uma prioridade nacional? Que mais prova é necessária para reconhecer o estado de emergência financeira em que nos encontramos?
Dito tudo isto, resta acrescentar que o Governo e a sua maioria também poderiam ter facilitado o trabalho do TC se se têm aplicado mais no cuidado com o conteúdo das leis que pretendem fazer aplicar, a sua justificação e o próprio processo de as fazer entrar em vigor, pois que nem o estado de necessidade pode desculpar a menor qualidade do direito ou do processo legislativo.
Enfim, é urgente e necessário sair do novelo criado, aliviando a tensão institucional que hoje se vive, e preservando os espaços "naturais" das instituições, por forma a desactivar um conflito de que, além de ninguém poder sair vencedor, o grande perdedor será sem dúvida o país. Para isso, bom senso é o ingrediente principal.
Vítor Bento é economista e Conselheiro de Estado