Relatório da Comissão Europeia diz que decisões do TC influenciam sucesso do programa da troika

“Um segundo resgate poderia ter graves consequências" e, em "última análise, derrubar o Governo”, diz um documento enviado de Lisboa para Bruxelas. Eurodeputada socialista Edite Estrela diz que considerações são “inaceitáveis”.

Foto
A carta seguiu esta semana de Lisboa para Bruxelas Reuters/Francois Lenoir

“O desfecho do programa de assistência é importante para Portugal e para a Europa.” “Um segundo resgate poderia ter graves consequências para a economia e poderia enfraquecer e, em última análise, derrubar o Governo.” Estas são as principais conclusões de um relatório de quatro páginas enviado esta semana para Bruxelas pela representação da Comissão Europeia em Lisboa a que o PÚBLICO teve acesso.

Na sequência da divulgação do relatório, noticiado pela TSF, a representação portuguesa da Comissão Europeia veio esclarecer que o documento não representa qualquer tomada de posição sobre o assunto, mas sim uma descrição "analítica" de diversas posições sobre o tema.

“O que este relatório não inclui, contrariamente ao referido na notícia, é qualquer posição do chefe da Representação da Comissão Europeia em Portugal sobre este assunto, nem por maioria de razão da Comissão Europeia, o que seria contraditório com a natureza das suas funções”, esclareceu a instituição, numa nota enviada à Lusa.

O relatório avisa, em jeito de introdução, que a análise constitucional às propostas orçamentais “vai influenciar o desfecho do programa de assistência” a Portugal e que, “se forem rejeitadas medidas que contribuam para os objectivos plasmados no memorando de entendimento (MoU, na abreviatura em inglês), poderá ser necessário um segundo resgate, com sérios custos económicos e sociais para o país”. E nota que existe um “grande debate em torno do papel do TC” na definição das grandes opções políticas em Portugal.

“As dúvidas sobre a imparcialidade política do TC existem desde a sua criação; contudo, na actual situação política e financeira, qualquer activismo político desta instituição pode ter graves consequências para o país”, lê-se no documento em que se analisa a situação política e as implicações de eventuais chumbos do Tribunal Constitucional (TC) a medidas do OE 2014.

Entre os comentadores com influência existe, refere o documento, quem considere que o TC ultrapassa as suas funções, “acusando-o de ser activista” e “comprometido politicamente” e outros “notam que o TC decide sempre negativamente quando em causa estão medidas que afectam os seus próprios interesses”, nomeadamente medidas relativas à reduções de salários e pensões, refere o documento.

O debate sobre a esfera de actuação do TC é cada vez mais importante porque, “embora o Governo esteja empenhado em cumprir os compromissos acordados com a troika, a sua margem de manobra fica cada vez mais limitada a cada chumbo do TC”, sustenta o documento escrito pela técnica da Comissão Europeia Katalin Gonczy e aprovado pelo líder da representação em Lisboa, Luiz Pessoa.

Questões controversas
A análise assinada por Luiz Pessoa levanta diversas questões que diz serem as mais controversas no actual debate político: “Existem medidas que o Governo pode implementar sem tocar naquelas que se arriscam a ser declaradas inconstitucionais? Estará o TC a comprometer o sucesso do programa de assistência com argumentos de natureza política nas suas decisões? Estará a supremacia do pacto orçamental [da União Europeia] a ser respeitada pelo TC?”

Lembrando que entre as razões apontadas por Vítor Gaspar para se demitir estavam “as sucessivas rejeições do TC e a erosão do apoio da opinião pública”, afirma-se que, “a cada contratempo provocado pelo TC, o leque de opções do Governo português fica menor” e que as alternativas encontradas para substituir as medidas chumbadas constitucionalmente têm sempre piores resultados.

É também reforçada a ideia de que a credibilidade internacional de Portugal e a sua capacidade para atrair investidores estão intimamente ligadas à previsibilidade das suas políticas económicas e fiscais e que os mercados financeiros reagiram de imediato a cada chumbo do TC. Assim, “é evidente que é crucial um consenso entre actores políticos e constitucionais” para a conclusão do programa de assistência.

 A política e o TC
“Será que o TC português é um legislador negativo?”, é uma interrogação que surge no documento da Comissão Europeia, citando-se um estudo da Universidade de Illinois que conclui que os juízes do Constitucional nomeados por partidos de direita têm maiores probabilidades de aprovar medidas de um governo de esquerda do que o inverso. “São mais sensíveis ao partido no poder” e “as preferências não se medem apenas pela filiação política”, mas eventualmente também por “oportunismo político”.

Tendo em conta que nas últimas medidas analisadas houve uma rejeição quase consensual, pode haver lugar a duas interpretações: uma de que o TC fez uma interpretação estrita da Constituição e outra de que pode ter interferido na política orçamental do Governo, “actuando como um legislador negativo”.

O relatório refere ainda que o TC é visto como um risco para a aplicação do memorando de entendimento dentro e fora de Portugal, e levanta questões sobre a inconstitucionalidade do não cumprimento do pacto orçamental por Portugal, caso falhe as metas acordadas com a troika.

“Considerações inaceitáveis”
“São considerações inaceitáveis sobre o funcionamento da democracia portuguesa”, reagiu nesta sexta-feira ao PÚBLICO a eurodeputada socialista Edite Estrela, referindo-se às expressões contidas no relatório interno da Comissão.

“O Tribunal Constitucional é tratado de forma desrespeitosa”, acentua Edite Estrela, referindo-se à acusação de activismo político formulada pelo representante de Bruxelas. “Como se o TC português não fosse igual ao Tribunal Constitucional alemão, o que é um atentado ao próprio Estado de direito”, acusa a eurodeputada.

Edite Estrela afirma que irá novamente interpelar a Comissão Europeia, chamando a atenção para a reincidência do comportamento do seu representante em Portugal.

“Quando o PS apresentou, em Março, a moção de censura na Assembleia da República, foram contactados os embaixadores da União Europeia, aos quais foram explicados os motivos da nossa posição”, recorda a eurodeputada. “Todos agradeceram, enquanto o representante da Comissão Europeia fez considerações de natureza política.”

No seguimento desta atitude, Edite Estrela interpelou a Comissão Europeia: “Foi-me então dito que os representantes da Comissão não se devem pronunciar sobre as tomadas de posição dos partidos políticos nacionais, que isso é uma intromissão, mas agora é mais grave, agora tem a ver com o funcionamento do próprio sistema democrático.”

Barroso e “o caldo entornado”
Já no início do mês de Outubro, Durão Barroso se tinha antecipado à apresentação do OE, enviando um recado ao Tribunal Constitucional.

À margem de um encontro empresarial no Algarve, o presidente da Comissão Europeia afirmou que estaria “o caldo entornado” se Portugal falhasse o ajustamento e defendeu que o esforço de cumprimento do programa deve ser de todo o Estado português e não apenas do Governo.

O sucesso do programa de ajustamento não cabe "apenas ao Governo, mas a todos os órgãos de soberania, incluindo os tribunais e a sociedade no seu conjunto", sublinhou então.

Barroso negou que a Comissão Europeia estivesse a trabalhar noutro cenário que não o do cumprimento do acordo com a troika, mas notou que, agora que se aproxima o final do programa de ajustamento, Portugal “não pode deitar tudo a perder” e criar instabilidade que prejudique o regresso aos mercados.

“Quando as pessoas começam a duvidar, começam a vender dívida pública portuguesa, os juros começam a aumentar e lá temos outra vez o caldo entornado", disse o presidente da Comissão Europeia.

Notícia alterada às 14h57 com novos dados sobre o documento enviado para Bruxelas pela representação da Comissão Europeia em Lisboa.

Sugerir correcção
Comentar