Que território é esse povoado por todos os guarda-chuvas que desaparecem sem rasto e sem volta? Pergunta fundadora desta narrativa para a qual Afonso Cruz vai apontado respostas. Para onde vão as mulheres de cabelos como que a fugir de uma gaiola, as crianças que gritam onomatopeias? Para onde vai o que se perde para sempre? Ponto final na leitura de Para Onde Vão os Guarda-Chuvas e a confirmação de que Afonso Cruz (Figueira da Foz, 1971), ex-realizador de animação, escritor, ilustrador, músico, se mantém fiel à sua tradição - a de um contador de histórias que filtra o real com uma dose generosa de fantasia e uma vasta herança de referências culturais, filosóficas e religiosas, a de um viajante, a de alguém que interpreta/questiona o mundo como se o mundo fosse um texto contaminado por muitos textos.
Ler é perguntar, escrever também, costuma dizer ou dar a entender Afonso Cruz, numa linguagem poética próxima dos velhos livros de saber; sem o peso dos ensaios teóricos, embora indo às mesmas fontes de sabedoria. Estrutura cuidada, definida, mas que é raro sentir-se como um espartilho da intriga; capítulos pequenos; títulos que replicam o início da primeira frase mas descontextualizada do seu sentido; alegorias; aforismos; um apurado sentido da ironia quase sempre a par com uma boa dose de pathos, ou o que convencionalmente se chama sentido do trágico; uma invulgar capacidade de despertar emoções até aos mais empedernidos sem que eles saibam muito bem como porque é subtilmente invasivo) - características avulsas que Afonso Cruz tem trabalhado em conjunto (a evolução sente-se), em sínteses com diferentes níveis de qualidade (a produção é vasta) e que encontram talvez o melhor exemplo neste Para Onde Vão os Guarda-Chuvas, o romance mais "afonsino" de Afonso Cruz.
Aqui encontram-se as marcas dos anteriores A Carne de Deus, com que se estreou (Bertrand, 2008), Os Livros que Devoraram o Meu Pai (Caminho, 2010), o muito premiado A Boneca de Kokoschka (Quetzal, 2010), A Contradição Humana (Caminho, 2010), O Pintor Debaixo do Lava-loiças(Caminho, 2011), Jesus Cristo Bebia Cerveja (Alfaguara, 2012) ou mesmo - e também - do seu mais borgesiano e não-romance Enciclopédia da Estória Universal (volumes de 2009, 2012 e 2013). São cinco anos e 12 livros (com o 13.º a chegar também agora às livrarias). Por isso é legítimo falar-se em tradição, mesmo que se trate de uma história de publicação literária tão curta. Certo é que foi tempo já suficiente para criar um universo com marca própria.
Estamos no ano quinto, no livro 12.º. A aposta de Afonso Cruz é ambiciosa. Colocar três livros num romance de 600 páginas, com ilustrações, fotografia, esquemas gráficos, frases e palavras que ganham vida fora das regras da sintaxe, em muitos fragmentos dispersos. Começa com uma História de Natal para crianças que já não acreditam no Natal (25 páginas de ilustração e pouco texto), passa para um romance propriamente dito, segue-se um livro de aforismos compilados pelo já conhecido Théophile Morel, que o autor vai buscar às suas enciclopédias. É antes, no segundo capítulo, que se conta o início da história de Fazal Elahi, o dono de uma fábrica de tapetes que "gostava de se confundir com a paisagem", casado com Bibi, que "não tapava os cabelos" (e que é o "elemento difícil de resolver na sua vida"). Ele é devoto de Alá. Ela desafia o Corão. Na casa de Elahi vivem também Badini, dervixe e monge muçulmano que vive despojado de bens e de vício, casto, e o primo mudo que fala com as mãos e que sempre que fala constrói um poema. Vive ainda Aminah, a irmã de Elahi, que espera encontrar marido e está secretamente apaixonada por Dilaware, viciado em ópio, filho fraco do forte general soviético convertido ao Islão, Ilia Vassilyevith. Aminah cuida da casa de Elahi e não repara no amor de Nachiteka Mudaliar, que a persegue no mercado e não se cansa de pedir a todos os deuses hindus para ser feliz. Eles são o centro de um livro com personagens complexas, cada uma com uma função bem definida na trama, como nas histórias de Xerazade.
A geografia é a de As Mil e Uma Noites, mas o tempo é o actual. Um território no Oriente, país sem nome com marcas da cultura persa, próximo do Paquistão; uma nação muçulmana com população também hindu, visitada por cristãos, sob domínio militar norte-americano. Nomear não foi preciso. Encontramos Elahi no momento em que adopta Isa, rapaz norte-americano, um cristão que o muçulmano se propõe educar desafiando ódios e colocando sobre si as atenções. Elahi, o que queria passar indiferente, já não passa. Isa, o brilhante pequeno geógrafo, é o modo que tem de suportar a morte de Salim, morto aos quatro anos por uma bala disparada pelos soldados da América.
A acção não é linear. Porque se senta Isa ao colo de Elahi? Há que saber do antes. Afonso Cruz manipula então o tempo como se de um aliado se tratasse. Para adensar a história, dar peso a premonições, fortalecer o carácter das suas personagens. "67. O passado é aquilo que conseguimos fazer do futuro", lê-se nos Fragmentos Persas, livro que Badini transporta consigo e que o ajuda a interpretar o quotidiano - outra criação de Afonso Cruz, figura aqui como conjunto de regras, enciclopédia moral, religiosa, filosófica e estética, objecto de mediação de um mundo impossível de ler em separado. Para Onde Vão os Guarda-Chuvas é um romance dessa mundivisão, livro civilizacional construído a partir de lutos individuais que segue um homem à procura de equilíbrios na sua tragédia pessoal. "Fazal Elahi pensava no equilíbrio do mundo, que era uma equação extremamente desequilibrada, mas que, apesar disso, exigia uma espécie de harmonia. Se um homem fala, entra-lhe silêncio pela boca, e se conquistou alguma felicidade pode esperar grandes tragédias."
Escrita rápida, cheia de imagens, a pedir pausas mas a exigir ritmo - é um compromisso difícil, o da escrita de Afonso Cruz com a leitura de Afonso Cruz. Quem já leu conhece. A agilidade da narração e os aforismos a pedirem a absorção lenta. Às vezes cansa. Aqui quase nunca. Terá conseguido Afonso o equilíbrio? A harmonia de que fala Fazal Elahi? Na sua simplicidade de devoto de Alá, ele adivinha essa impossibilidade, e mesmo assim persegue-a. "Fazal Elahi não erraria na sua premonição, o universo gosta de equilíbrios completamente desequilibrados, é feito de opostos e de mãos dadas, um homem enorme a segurar a mão de uma menina pequenina. E, no caso de Elahi, esse equilíbrio absurdamente/moralmente/esteticamente desequilibrado foi conseguido a prestações."
Para Onde Vão os Guarda-Chuvas é o ponto mais alto da capacidade narrativa e de efabulação de Afonso Cruz. É fácil cair em jargões para o classificar. O que poderia não passar de um exercício de demonstração de sabedoria é um livro cheio de humanidade, muitas vezes brutal, e de um apurado sentido estético. Magnético.
Nota: Para Onde Vão os Guarda-Chuvas terá uma tiragem inicial de cinco mil exemplares, dos quais dois são exemplares únicos. Um é a versão nocturna e outro a versão diurna deste romance. Sigam Isa, o menino que sabe de geografia. Se a palavra "Ankara" surgir, o seu livro é um dos dois casos únicos e a editora reserva-lhe um presente.