A mulher com cabeça

Envolto nas roupagens levemente nostálgicas de uma Nova Iorque académica e afluente, mitificada pelos bons ofícios do cinema, Hannah Arendt pode ter um leve aroma de “filme fora de tempo”, ou não identificássemos a sua autora, a veterana alemã Margarethe von Trotta, com a vertente mais interventiva do cinema alemão dos anos 1970. E é obra que recorda, com saudade e sem saudosismo, um tempo em que havia espaço e disponibilidade para o, e entusiasmo pelo, pensamento. Um tempo em que a cultura, a arte, a literatura não eram apenas palavras vãs, mas sim algo que tinha um impacto prático, quotidiano.


É isso que torna Hannah Arendt no filme mais importante actualmente em exibição em Portugal. O que Von Trotta faz dos quatro anos (1961-1964) durante os quais a filósofa Hannah Arendt viajou até Jerusalém para cobrir o julgamento do oficial SS Adolf Eichmann e publicou o seu polémico ensaio sobre a “banalidade do mal” é, ao mesmo tempo, retrato de mulher e filme de ideias. Mas o notável é que a abstracção do pensamento de Arendt nunca é separada da personalidade, da pessoa que o pensa; é um filme de personagens que nunca afoga as ideias, e um filme de ideias que nunca se impõem às personagens.

Encarnada de modo extraordinário por Barbara Sukowa, Hannah Arendt é uma mulher fiel apenas ao seu intelecto e aos seus amigos, que se recusa a diluir ou adoçar o seu raciocínio apenas para ser politicamente correcta. Arendt bem pode querer separar as águas do pessoal e do profissional mas o affaire Eichmann e a sua noção de rigor intelectual imparcial apenas vieram sublinhar a lição que o seu professor, Martin Heidegger, aprendera tarde demais: a vida real e a vida da mente não são a mesma coisa e há que escolher e assumir as consequências. O pensamento da filósofa pode ter afectado o mundo, mas exigiu um preço pessoal - e é também aí que Von Trotta e Sukowa ganham o filme, ao recusar “separar as águas” e pintá-la como alguém intocável, ao tornar Hannah Arendt numa apaixonante meditação sobre o pensamento como algo de profundamente cinematográfico, até sedutor e sexy - e melhor “filme de recrutamento” para pôr a cabeça a mexer é difícil de imaginar.

O que, aliás, leva a outra e importante questão: será que, hoje, em 2013, o que Arendt escreveu há 50 anos teria gerado tal sururu? Só fazer essa pergunta bastaria para tornar este num filme central para os tempos que vivemos. Felizmente, faz muitas mais.

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