Depois da Toscana, onde filmou "Cópia Certificada", Abbas Kiarostami segue para o Japão, território de "Like Someone in Love". Mas ao contrário de "Cópia Certificada", onde não era nada indiferente o cenário circundante, integrado no filme também como reflexão sobre a arte, a cultura e a história italianas, em "Like Someone in Love" o Japão é muito mais apenas um cenário. Quer dizer: o filme está lá dentro, dos bares, das casas, das ruas, sem uma nota em falso, e até há uma pequena prelecção sobre uma pintura japonesa do século XIX, mas é difícil pensar que “reflectir” sobre o Japão, ou sobre a sua condição de cineasta estrangeiro a filmar no Japão, tenha sido uma preocupação de Kiarostami. Nem mesmo Ozu, que é uma das grandes referências de Kiarostami (até já lhe dedicou um filme: Five - Dedicated to Ozu), vem muito ao caso, e também é dificil pensar nalgum momento que soe a “homenagem” ao cineasta japonês: nem sombra de algo parecido com um “plano Ozu”.
Como Kiarostami diz, de resto (ver entrevista nestas páginas), o filme nem foi especificamente pensado para ser feito no Japão. Concentra-se nas personagens, e no espantoso grupo de actores que as interpreta, é provavelmente o filme de Kiarostami mais character-driven, mais guiado, em última análise, pelo desenho das personagens e das relações entre elas. Com um pudor e uma subtileza enormes: nunca se diz claramente, por exemplo, que a protagonista feminina é universitária de dia e prostituta à noite, e no entanto isso fica plenamente sugerido, por meias palavras, ao fim de poucos minutos, naquela sequência assombrosa de campos/contracampos, cheios de movimento interno, que abre o filme dentro dum bar de Tóquio. Assim como nunca saberemos exactamente - as elipses de Kiarostami são sempre magistrais - o que se passou de facto na noite que a rapariga passou em casa do professor que recrutou os seus serviços. Que é de resto, toda ela, uma sequência excepcional, completamente “centrípeta”, sempre a fugir para o lado do que naquela situação seria essencial: as interrupções (os telefonemas que o professor recebe, de alguém a pedir-lhe uma tradução), as derivas (a tal conversa sobre a pintura, pendurada na parede), o vinho e a sopa de camarão com que o professor tenta arrancar a rapariga ao torpor sonolento em que cai (até se transformar ela própria, por obra e graça de um enquadramento de génio, numa “pintura na parede”, a sua imagem esfumada reflectido num espelho ao canto do plano).
Essa sequência, de resto, dá sentido ao título do filme. É nela que se ouve a canção homónima de Ella Fitzgerald, tocada na aparelhagem do professor, e é durante ela que as personagens mais supostas são comportarem-se “como alguém apaixonado”. A rapariga, por profissão, o professor, por ocasião. Entra em cena, portanto, uma espécie de teatro, em que toda a gente representa um papel perante os outros, que não mais largará o filme. Quando saiem de manhã, e depois de encontrarem o namorado da rapariga, o professor e ela passam a apresentar-se “como avô e neta”, mascarada que será mantida perante todos os outros secundários, incluindo a espantosa personagem da vizinha, que começa por ser só uma voz e depois tem direito a um plano inteiro só para si Incidentalmente, essa personagem e esse plano são o que desperta mais “memórias” do cinema japonês, mas a “representação” do velhote e da rapariga, sempre sobre ameaça de “desmontagem”, fazem pensar em algo mais inesperado, uma espécie de pequeno Vertigo, com um homem mais velho a passear uma mulher mais nova que ele, de certo modo, “inventou”. Os planos com o automóvel, os reflexos no vidro, ora o céu e as nuvens ora as construções arquitectónicas dos arredores de Tóquio, talvez não sejam, nesse sentido, puramente inocentes. O automóvel, de resto, continua a ser o “dispositivo” preferido de Kiarostami, e é dentro de automóveis que se passa boa parte do filme - incluindo, ainda não tínhamos referido, um magnífico travelling por Tóquio by night, na mais dorida sequência do filme, aquela em que a rapariga, em trânsito para o “encontro” em casa do professor, ouve, uma a uma, as mensagens telefónicas que a avó, que passou o dia na estação de comboios à espera dela, lhe foi deixando (e essa avó, que é só uma voz no telemóvel e depois uma silhueta entrevista numa praça de Tóquio, é outra personagem extraordinária, possível rima para a da vizinha do professor no modo como lutam para sairem do fora de campo a que as outras personagens as remetem).
Todas as mentiras, fakes e mistérios que pontuam o filme ficarão em suspenso. Naquele final inacreditavelmente violento, cheio de ruidos e interrupções (as campainhas, os telefones), e outra personagem (o namorado) revoltada também com o “fora de campo” a que o par central a condena. O que é que ali se passa verdadeiramente, o que é que se passou depois de Kiarostami ter cortado para o genérico de fecho sem mais delongas, permanece um enigma, fabricado à custa de uma secura inexorável. Também aí estamos próximos do mais puro e mais “iraniano” Kiarostami.