Copacabana, princesinha do Papa
A jornalista Alexandra Lucas Coelho conta como foi a primeira noite do Papa, na quinta-feira, na praia de Copacabana
São cinco da tarde no Rio de Janeiro, a cidade foi parada com feriados, trânsito cortado em todo o bairro, toda a rede de metro fechada a não ser para quem comprou um bilhete especial, que permite viajar apenas numa hora específica, só vendido em algumas estações, e com muita antecedência. Fora isso, a única forma de chegar aqui é caminhar desde Ipanema ou Botafogo. E mesmo assim, Copacabana está lotada: milhares de peregrinos com as mochilas coloridas da Jornada Mundial da Juventude, milhares de cariocas e de turistas, e os vendedores ambulantes, com ou sem fé, a terem um grande dia: bandeiras do Brasil, bandeiras do Papa, capas de chuva, guarda-chuvas, pipocas, chocolates, biscoito de polvilho.
Aglomeração assim só para o fogo-de-artifício do réveillon. Mas o fogo vê-se de qualquer ponto fixo da praia, ao longo de quilómetros, ou mesmo longe dela, desde que num lugar alto, enquanto hoje toda a gente vem para ver um só homem, que vai estar em movimento até chegar a um palco, montado na outra ponta da praia. Isto significa duas coisas: a massa vai ter de correr atrás dele, o que não acontece no réveillon, e quase toda a massa só verá uma mancha branca ao fundo ou num ecrã.
A repórter não está na primeira camada dos acontecimentos, em cima da grade de segurança, optou pela retaguarda dos peregrinos, mas é fácil perceber o momento em que o papamóvel aparece a sair do forte, logo depois do helicóptero papal ter aterrado: a multidão na primeira camada grita agudamente, como gritou para os Beatles no tempo em que eles diziam que eram mais famosos que Jesus Cristo, algo que Francisco nunca diria. Se há uma unanimidade entre fiéis e não- fiéis é que o estilo deste Papa é zero arrogante, e aí começa a sua sedução.
Os gritos da primeira camada contagiam as camadas atrás, que então se precipitam umas contra as outras, todas de braços no ar, com écrãs de vários tamanhos na ponta. Então, o papamóvel aparece, iluminado como uma auréola, um halo de luz no centro do qual está a figura branca do Papa. Contra o lusco-fusco, é um contraste quase de aparição, os helicópteros por cima como insectos vigilantes.
Vendo da retaguarda, parece que alguém está a fazer um filme
E o que se segue podia ser um longo plano-sequência: mal o papamóvel avança, a multidão desfaz o alinhamento e desata a correr pela Avenida Atlântica, ao lado do Papa, até à próxima microparagem em que Francisco, sempre sorridente, volta a abençoar e a tocar em quem está mais perto. A repórter ouve contar que um peregrino, provavelmente do Sul da América do Sul, consegue mesmo oferecer-lhe a sua cuia de mate, e Francisco não hesita em beber.
Princesinha do mar, Copacabana tem vivido achando que nada do que é humano lhe é estranho: a chegada dos primeiros banhistas; os casarões ao longo da praia; o começo da má arquitectura; a bossa nova em casa de Nara Leão; o auge do Copacabana Palace; os bordéis, as prostitutas, os travestis, os turistas, os velhos, os vagabundos; as flores do candomblé na passagem do ano; o fio dental. Faltava-lhe a fé humana fazer dela a princesinha do Papa.
Peregrinos com cordas
Então é assim por quilómetros, à medida que a praia avança e a noite vem: o halo de luz deslizando, por cima os três insectos a zumbir, e a multidão a correr loucamente pela Avenida Atlântica, só parando para se amontoar a cada microparagem do papamóvel, sempre de ecrã erguido na ponta do braço.
Para não se perderem, famílias e grupos inteiros de peregrinos correm de mão dada, ou mesmo atados por cordas, estratégia também usada pelo menos por um bando de frades franciscanos, com o qual a repórter se cruza duas vezes.
De cada vez que a Atlântica é interceptada por uma rua transversal, um magote de gente soma-se à massa, produzindo um engarrafamento em vários sentidos, incluindo crianças e deficientes em cadeiras de roda, sendo que no meio de tudo isto começa a chover, e a temperatura cai.
As árvores estão cheias de gente, as varandas e janelas da avenida acenam, iluminadas, até os tectos das casas de banho químicas servem de camarote para avistar a luz do Papa.
Pelo fervor em massa, visto de relance, com as suas bandeiras, os seus cartazes, os seus hinos, podia ser uma revolução, e é só uma pessoa.
Noite escura. Francisco chegou ao palco, deixando uma longa cauda atrás das grades, porque além das grades, frente ao palco, já estava tudo lotado. Mas ao longo da praia, mesmo na areia, há écrãs gigantes, portanto aquele quase milhão que não cabe em frente ao palco senta-se na areia, dividido em blocos, consoante os écrãs, o que faz com que a cena fique mais para Woodstock que para revolução.
É certo que não há lama, mas continua a chover, portanto os afortunados são os que trouxeram grandes plásticos em cima dos quais se sentam. E os vendedores de capas impermeáveis estão a ganhar para o mês inteiro: em breve quase toda a gente tem uma. Como muitas são brancas translúcidas, o efeito é feérico. Sobretudo quando o vento vem mais forte e as capas voam, Copacabana parece um acampamento de anjos, milhares de anjos carnais, brancos, mulatos, negros, amarelos, ou uma espécie qualquer de seres anfíbios, ao longo da curva da baía.
Que faz uma bandeira da Síria ao lado de uma bandeira do Líbano no meio desta multidão? Brasileiros descendentes de sírio-libaneses? Não. “Viemos do Canadá”, explica a jovem Fairouz, em inglês com forte sotaque árabe. “Somos libaneses, egípcios, sírios, emigrados em Montreal. Católicos maronitas.” Ao todo, um grupo de 25. “Este Papa é tão humilde, tão perto das pessoas”, justifica Fairouz. E uma mulher com idade para ser mãe dela acrescenta: “É o Papa dos pobres, o Papa de que o mundo precisava.” E de novo Fairouz: “Faz-nos sentir que a igreja é nossa.”
Do Japão
São 18h15. Em pé na areia, Parkingyu olha o écrã mais perto. O nome é coreano, mas a bandeira gigante que ele empunha é japonesa. “Viemos 65 pessoas do Japão”, diz, num escasso inglês. O círculo vermelho-no-branco flutua na noite de Copa, enquanto no palco soa Aquele Abraço, versão orquestra, com o Papa sentadinho numa espécie de trono central, a ouvir.
A areia está repleta de gente sentada, como numa plateia de cinema ao ar livre, e gente em pé mais perto da água. Peregrinos em todo o canto onde de dia é o grande estendal hedonista carioca, incluindo as balizas de praia.
E Francisco, sempre sedutor, cumprimenta assim o quase milhão na praia: “Sempre ouvi dizer que os cariocas não gostam do frio e da chuva, mas vocês estão mostrando que a fé de vocês é mais forte que o frio e a chuva. Parabéns! Vocês são verdadeiros guerreiros.” Alegria e aplauso geral.
Quando o Papa pede um momento de silêncio pela morte de uma peregrina que vinha a caminho e morreu na Guiana Francesa, milhares de capuzes de chuva curvam-se no silêncio, só se ouvem os helicópteros por toda a praia. Depois Francisco saúda Bento XVI em espanhol, os jovens cantam o nome dele, “Be-ne-dito! Be-ne-dito!”, e Francisco canta com eles: “Be-ne-dito! Be-ne-dito!”
O som desaparece, volta com eco, volta ao normal. As palmeiras agitam-se loucamente. Dezenas de peregrinos descalçam-se, arregaçam as calças, avançam para o mar, recuam aos gritos quando a onda vem. Lá ao fundo, na curva da baía, Francisco continua a falar, em espanhol, de como “desde o Corcovado, Cristo nos acolhe e abraça nesta belíssima cidade”, e de como “os cariocas sabem receber bem, dar uma grande acolhida”.
Segue-se, lá no palco, um desfile de jovens que vêm ao microfone nas suas línguas locais saudar o Papa, e serem por ele saudados. Na areia, há quem chore só de ver, grandes grupos, pares de namorados, gente sozinha.
Uma soprano canta a bachiana No. 5, de Villa-Lobos, com um alcance de quilómetros. Há quem continue a chorar, só de ouvir, Depois Fafá de Belém e Nazaré Araújo cantam o hino do Círio de Nazaré, a maior manifestação católica brasileira, em Belém do Pará. Depois, uma leitura cantada do Evangelho feita por um padre brasileiro, que termina com a praia a responder: “Glória a vós, senhor!” E aplausos, e cada vez mais chuva e mais vento.
Quando o Papa volta ao microfone, o manto teima em voar, cobrindo-lhe a cara. É um discurso todo centrado na fé da juventude: “Bote fé: o que significa? Quando se prepara um bom prato e vê que falta o sal, você então bota o sal; falta o azeite, então bota o azeite.”
Passa das 19h30 quando Francisco se retira, ao fim de mais de duas horas em Copacabana.
Para quase um milhão de pessoas, é o início de uma via- sacra antes mesmo da Via-Sacra que no dia seguinte será encenada aqui: conseguir voltar para casa, comer ou ir à casa de banho. As ruas interiores de Copacabana enchem-se de gente. Botecos, restaurantes, Mc’Donalds ficam entupidos. A fila para o metro, mesmo só com acesso de bilhete especial, dá a volta a vários quarteirões. Milhares optam por caminhar até outros bairros, onde já haja autocarros e táxis. E na fila do metro, a bandeira de Angola. E na caminhada a pé, congoleses a dançarem. Peregrinos heróicos.