Uma amizade adiada
A rivalidade entre Jacques Anquetil e Raymond Poulidor dividiu a França.
Tudo opõe Anquetil, um burguês da Normandia, frio e calculista, vencedor de quatro edições do Tour, a Poulidor, pura explosão e emoção no corpo de um agricultor, um jovem a construir o mito do eterno segundo. O inacessível e o sociável, em suma. Nos anos 60, não há lugar a meios-termos. Cada um deve escolher o seu lado. A rivalidade entre os dois homens divide em dois a França, tão ciosa dos seus, como nenhuma campanha política conseguiu fazer.
Quando a Grande Boucle chega ao Maciço Central, aquela edição já se tinha tornado uma das mais famosas da história. Mas o melhor estava para vir. O mais forte. O mais louco. Ali, no alto de Puy-de-Dôme, a 1415 metros de altitude. A dois dias de Paris. Do lado de "Poupou", reina a confiança. Entre ele e a amarela há apenas 56 segundos. Estava ali a sua oportunidade de ouro.
O sábio Antonin Magne, duplo vencedor da Volta à França nos anos 30, tinha-o levado a reconhecer meticulosamente a subida na semana anterior ao arranque do Tour. Sabe como poucos os truques daquela estrada. Conhece-lhe as rampas mais duras, os pontos de descanso, os desvios traiçoeiros. A preparação precisa segue na sua cabeça enquanto sobe. Precisa de ler a corrida, olhar, para atacar no momento oportuno.
Mas Anquetil não o larga. Lado a lado. Nem um pouco mais à frente, nem atrás. Os dois balançam na bicicleta, entreolham-se. A 1500 metros do topo, tocam-se ombro a ombro, como dois ciclistas de pista. Um cotovelo a cotovelo insensato. "O suor dos dois homens parecia misturar-se", escreveria depois Jacques Goddet.
Poucos se lembrarão do formidável trepador espanhol Julio Jiménez, isolado à procura da vitória na etapa e da bonificação que a acompanha. Uma bonificação que podia ter alterado o curso da corrida. Nada importa, porque, nesse mesmo instante, Poulidor e Anquetil têm os olhos da França suspensos em si. Sob a flamme rouge, o marco que indica um quilómetro para a meta, os rivais permanecem colados. Os apoiantes do eterno segundo roem as unhas, questionando-se sobre o que esperará o seu favorito para atacar.
A 900 metros da meta, o camisola amarela cede um pequeno espaço. Primeiro um metro, depois dois. Dez. Poulidor parte. Tem a estrada à sua frente, a meta a que tanto aspira atrás de si. O colapso de Anquetil é terrível. Aquele torna-se rapidamente o quilómetro mais longo da sua vida. Os metros não passam, as pernas não andam. A 400 metros da meta, é alcançado por Adorni, vindo de trás. O italiano não tarda em deixá-lo. Num esforço desesperado, hercúleo, consegue salvar-se do naufrágio. A liderança está presa por 14 segundos.
Poulidor deixou fugir a sua derradeira oportunidade. Quarenta e oito horas mais tarde, no último contra-relógio, perde 56 segundos para Anquetil. "Falam-me sem parar dessa etapa. No entanto, não sinto especialmente qualquer arrependimento. Não estava bem nesse dia. Foi o Jacques que explodiu completamente, não fui eu que ataquei. Não me sentia capaz".
Mas, naquele dia, à chegada, Antonin Magne não consegue compreender. Talvez o seu protegido tivesse escolhido mal o andamento. Não deveria ter optado por 26 dentes como o tinha aconselhado? Pergunta-lhe com que andamento fez o reconhecimento. Poulidor baixa a cabeça, envergonhado, e, como um menino pequeno, responde: "É que, senhor Magne, nesse dia em que vim conhecer a subida, a estrada não estava aberta até ao topo". A lenda do eterno segundo desperta. O perfeccionista Anquetil nunca teria cometido o mesmo erro.
Inimigos até ao último momento, os dois saberiam superar a rivalidade para um final feliz. E a cumplicidade forçada naquele 12 de Julho de 1964 foi determinante. Fora da estrada, quando encostaram a bicicleta, descobriram que aquilo que os separava era aquilo que os unia. "Perdemos 15 anos de amizade", diria um dia Anquetil, quíntuplo vencedor da Grande Boucle. Poulidor nunca ganhou o Tour - foi três vezes segundo e cinco vezes terceiro -, mas ganhou um amigo para a vida.