A história da despedida do Optimus Alive 2013 fez-se na tenda onde estiveram Alt-J e Django Django
O público aguardou pacientemente que os Kings Of Leon tocassem “Sex is on fire”, o público transbordou o palco Heineken para os concertos de Alt-J e Django Django. Os Tame Impala não estiveram lá, mas palco secundário foi, na verdade, o palco principal no último dia do Optimus Alive
A despedida do Optimus Alive 2013, domingo. Ao longo de três dias, segundo divulgado em conferência de imprensa por Álvaro Covões, administrador da Everything Is New, a promotora do festival, terão passado pelo Passeio Marítimo de Algés 150 mil pessoas. A edição do próximo ano tem datas marcadas: 11, 12 e 13 de Julho. A máquina já está em andamento. Num festival, não há tempos mortos. Na produção de um festival desta dimensão, também não.
Domingo, porém, houve uma altura, já depois de os Linda Martini terem inaugurado com estrondo o palco principal; depois de Jake Bugg, cantor com a folk e a country bem estudada e com a genética brit devidamente exposta (há sempre um pé a fugir para a melodia orelhuda) mas ainda demasiado verde para lhe apercebermos verdadeira identidade; já depois, continuemos, do psicadelismo expansivo, passe a redundância, dos Tame Impala, e da eficiência, muito do nosso tempo, na gestão rock clássico/dinâmica electrónica/pop de pôr os braços no ar e lançar sorrisos de alegria dos Phoenix; depois de todos eles, dizíamos, os Kings Of Leon acabaram por ser durante algum tempo o tempo morto que, normalmente, não existe num festival.
A carreira da banda dos irmãos e primo Followill explica porquê. Quando surgiram com “Youth & Young Manhood”, há dez anos, eram um encontro feliz entre a tradição boogie do rock sulista americano e o presente de então, representando pelos Strokes e suas linhas de guitarra desenhadas com precisão matemática. Aquele cantar quase grunhido do vocalista Caleb Followill era de uma estranheza cativante e a banda um bem-vindo anacronismo – banda de um espaço: o sul dos Estados Unidos, a dar o próximo passo depois dos anos 1970 de Allman Brothers Band ou Lynyrd Skynyrd.
Em 2004, tocaram no Rock in Rio para meia dúzia de almas que não faziam a mínima ideia quem eram os cabeludos barbudos em palco. Nove anos depois, no Optimus Alive, estão dezenas de milhar a aguardar. Os Kings Of Leon cortaram há muito cabelo, barbearam-se com cuidado, limaram as arestas às canções e, muito convictamente, abandonaram o lugar mítico que representa o sul dos Estados Unidos e o rock que dali brotou em favor de uma transversalidade universal. Ou seja, produção polida, guitarras mais serenadas, baladas à consignação, os estádios ao alcance da mão. Com “Only By The Night”, álbum de 2008, a transformação ficou completa, como representado por “Sex on fire” e “Use somebody”. O problema, como sempre acontece, é que a banda acabou por ficar refém do sucessos desses singles.
No Optimus Alive, enquanto Caleb (cabelo lambido e puxado para trás, t-shirt branca, casaco de ganga sem mangas) e restantes comparsas passavam pelos inícios de “Molly's chambers”, enquanto mostravam que, ao vivo, têm uma vitalidade que o lustro passado sobre as produções de estúdio não evidencia – o baixo altíssimo na mistura, o estrépito das guitarras -, ouvia-se à nossa volta, com intervalo de minutos, alguém trauteando uma melodia. “Aquela” melodia, com um “sex” proferido ali no meio. Um concerto na expectativa, portanto. Metade aguardando pelo momento esperado, uns quantos fiéis conhecedores não guardando o entusiasmo, outros tantos tentando cavalgar a onda do boogie sulista trabalhado para consumo radiofónico em larga escala.
Lá chegaria no fim, por fim, o que todos aguardavam: “Use somebody” e, já em refrão, “Sex is on fire”. Algures no Tennessee um camionista soltava uma lágrima de felicidade. Em Algés, uma azáfama.
Parte do público despediu-se do festival e bateu em retirada, a outra metade acelerou o passo até ao palco secundário para apanhar ainda um pouco mais de América: a dos Band Of Horses, parte country electrificado, parte voz confessional, parte tentação épica Springsteeneana. Foi uma constante deste último dia de Optimus Alive – não esta América, entenda-se, mas a correria para o palco Heineken.
Aconteceu ao final da tarde, com o neo-folk dos islandeses Of Monsters And Man (resultado: tenda a transbordar), aconteceu pouco depois das dez da noite com a síntese pop Alt-J (o ano passado tocaram as canções do óptimo “An Awesome Wave” no Milhões de Festa para algumas centenas, este ano são já verdadeiro fenómeno; resultado: tenda a transbordar mais ainda). E aconteceu já perto das duas da manhã, quando os britânicos Django Django agradeceram à multidão que “aguentara” até tão tarde para os ouvir.
Na noite em que Twin Shadow reciclou, como habitualmente, a estética sonora dos anos 1980 que o bom gosto quase esquecia e em que João Vieira (DJ Kitten; vocalista e guitarrista dos X-Wife) mostrou no Optimus Clubbing a sua nova banda, os White Haus, súmula feliz do pós-punk nova-iorquino (o segredo está nas linhas de baixo) e do legado da DFA de James Murphy (o segredo está no cowbell sugerido e no cenário sonoro construído pelos sintetizadores), os Django Django mostraram-se habilíssimos intérpretes de uma nova linguagem, saída da tradição arty britânica, hábil na conjugação de referências inesperadas, e potenciada pela genética (afinal, o baterista e produtor David McLean é irmão do teclista dos Beta Band, dignos antecessores dos Django Django).
Com público empoleirado nas estruturas de suporte da tenda ou esgueirando-se para encontrar um mínimo de visibilidade, a banda, tal como acontecera no último Vodafone Mexefest, em Lisboa, mostrou uma habilidade contagiante na forma como reúne um subtexto digital a riffs saídos do blues (como imaginados por Captain Beefheart), como dá o passo em frente no psicadelismo original, o da década de 1960, com harmonias vocais impolutas (a folk como pano de fundo) e cadência rítmicas de origem incerta, ponte entre uma África imaginada e uma colecção de discos generosa. Contraponto efusivo ao mistério introspectivo dos Alt-J, os Django Django são um caleidoscópio revelando constantemente novas formas: ritmos criados com cocos (homenagem eficiente aos Monty Python), exercício de levitação em tapete voador nesse óptimo cliché de música do Oriente chamado “Skies over Cairo”, uma pandeireta gigante marcando o ritmo e esse ritmo como frenesim constante que ninguém serena por um segundo.
Ouvimos “Hail bop” e ouvimos “Default”, canção resumo de toda a ética e estética da banda (grande canção, imensa canção). Ouvimos, resumidamente, o homónimo álbum de estreia. Público conquistado, banda de sorriso estampado no rosto. Não houve tempos mortos a assinalar. Do que assistimos, terá sido o melhor concerto da despedida do Optimus Alive.
Podia ser que tal distinção tivesse calhado a uns australianos chamados Tame Impala, tivessem eles actuado noite alta no mais, deliremos, intimista Palco Heineken, e não às 20h no palco principal. A banda de Kevin Parker é hoje uma banda em estado de graça, culpa de dois álbuns sem mácula, “Innerspeaker” e “Lonerism”, que são porta de entrada para um universo que inventa um lugar para si na história do rock'n'roll. Música vasta: no sentido em que tudo nela parece mover-se em ascensão, propulsionada pela secção rítmica em movimento preciso mas constante, pelos sintetizadores transmitindo uma sensação de irrealidade e pelas guitarras que, a maior parte do tempo, parecem ser matéria líquida correndo livremente – depois, os agudos tratados com filtro etéreo da voz de Parker fazem o resto.
“Solitude is bliss” a arrancar (“and you will never come close to what I feel”), a muito aplaudida “Feels like we only go backwards” para idílio pop, “Elephant” para mostrar que há Hendrix e vertigem Sabbathiana nesta música e, sempre, o entendimento telepático entre os membros da banda que permite estender as canções e deixá-las viajar em novas direcções sem sobressaltos. Pena que os 45 minutos de concerto, o horário e a luz do dia, naquele local, não nos permitissem mergulhar totalmente nos sons saídos da cabeça de Kevin Parker. No caso dos Phoenix, a banda que se seguiu, tudo é mais simples.
Os representantes pop da sofisticação “french touch” de Air e Daft Punk não têm grande segredo. São uma ideia de indie rock em que as melodias, preparadas para se colar ao ouvido e cantar em comunidade num estádio, se cobrem de sintetizadores muito 80s. Em que a guitarra e a secção rítmica se apoiam na new-wave para que o pé não deixe de bater, sem esquecer que a cultura de clube é hoje transversal – e, portanto, isto é pop sorridente que se dança muito seriamente, isto é uma construção de quem conhece muito bem as expressões de que são feitas as suas canções e que deseja criar a banda sonora deste tempo, o seu tempo.
A banda de Thomas Mars saltou inesperadamente para o estrelato com “Wolfgang Amadeus Phoenix”, de 2009, quando já contava quase uma década de vida. Agora, com canções como “Liztomania” ou “Entertainment”, Mars pode viver plenamente a sua vida de estrela pop: e ei-lo cantando nas grades separadoras do público, ei-lo em prolongado surf sobre a multidão, transmitido em ecrã gigante.
Concerto terminado, um corrupio de faces afogueadas correndo numa única direcção. A do concerto dos Alt-J. Os apressados já não conseguiram certamente entrar na tenda gigante do Palco Heineken, aquela onde se fez verdadeiramente a história do último dia do Optimus Alive 2013.