O estar à procura do ser

O tempo já foi absoluto (sempre o mesmo para todos em toda a parte). Depois de Einstein tornou-se relativo, passa de forma diferente consoante estamos em repouso ou em movimento. Dividido em duas partes, o último livro de João Luís Barreto Guimarães (o seu oitavo de poesia e primeiro após o volume Poesia Reunida, de 2011), articula na primeira, Partidas, o movimento (um grand tour pela Europa), e na segunda, Chegadas, o repouso (em terra pátria). Mas há movimento interior tal como há repouso exterior, e as epígrafes de Miroslav Holub escolhidas para cada uma das partes dizem-nos dessa continuidade entre o interior e o exterior, entre a mente e a vida: “There’s nothing in the mind that/ hasn’t been in life” e “There’s nothing in life that/ hasn’t been in the mind” (promiscuidade traduzida, por exemplo, na metamorfose das montras da prostituição flamenga nos interiores de Vermeer).

Apesar do título Você está aqui, não é o espaço (ou a geografia) a categoria dominante nestes textos, mas o tempo: “O espaço é algo abstracto/ é um assunto de tempo” (p. 22). Sem que esteja em causa um sentido metafísico do tempo, pois este é, aqui, o inimigo; um inimigo invencível, porque está dentro das nossas casas e nas nossas ruas, porque dorme connosco, vai connosco para o trabalho e pedala uma bicicleta estática num ginásio de onde se vê a vida a treinar na marginal de Leça, mas também se vê a poesia: coisa que se move sem sair do mesmo sítio (p. 57). O tempo cutâneo do hegeliano ? ?domingo da vida”, um tempo de tal forma expurgado do sentimento do sagrado que o sujeito se encontra em trânsito não para a eternidade mas para a “vida efémera” (p. 33), como se só esta, na sua insignificância, pudesse ainda significar alguma coisa e esgueirar um frágil sucedâneo de transcendência por entre as muralhas seculares. Um tempo com “a fadiga de/ ser eterno” (p. 47), o tempo, já se vê, da história ocidental, que chegado ao seu “fim” aparece parado e, sem sequencialidade (sem “narrativa”), coincide com o aqui, com o espaço. Uma história próxima, eurocêntrica, crepuscular, de velhas capitais, de grandezas derrubadas e de má-consciência como a do poema A preto e branco, movido por uma ética pós-Auschwitz e com o final a evocar subtilmente a Fuga da morte de Celan.

Não surpreende, portanto, a poética das ruínas, nem surpreende a predominância do modo cognitivo e perceptivo da meditação (até nos títulos — Meditação em Váci Utca) que os filósofos medievais diziam “pôr a alma em tensão”. Esse ethos romântico, antes desconhecido na poesia do autor, faz-se também evidente nas alusões ao Grand Tour, espécie de rito de passagem para os jovens da aristocracia e da burguesia endinheirada dos séculos XVII a XIX que servia para acederem à idade estética — iam ver de perto as glórias da civilização, os seus emblemas, fruir do carácter “global” do romantismo. Hoje, na época do low cost, o Grand Tour (que começou a democratizar-se com o Inter-rail) é mais modesto, já não visa a contemplação do sublime e a educação das elites, mas o lazer, a escapada, as viagens de finalistas; e o turista é uma caricatura de si mesmo que deambula melancolicamente por esse colossal museu em que a Europa se transformou. Donde a impossibilidade de o europeu se reconhecer nos lugares da história: ele reconhece-se em todo o lado o mesmo, estranha-se no familiar. O espírito do lugar é o cadáver de um genius loci cultural, e nos quartos de hotéis indiferenciados há o calafrio de nos sabermos mera repetição uns dos outros, mudados apenas os rostos (Um quarto de hotel em Madrid, p. 25).

Se a museologia (única epistemologia possível num mundo revelho) ainda pressupõe a deambulação do visitante, pese que espectral, já na segunda parte do livro, Chegadas, estamos no reino da inércia. Portugal aparece como um país incumprido, do qual pouco ou nada se espera; serve-lhe de alegoria o tapete rolante onde cada passageiro procura — em vão — avistar a sua bagagem na encruzilhada do aeroporto, ele próprio bagagem de mão, extraviado de si mesmo. Medita-se agora, entre ironias e sarcasmos, sobre ruínas interiores, permeáveis à dimensão política. Uma poesia inconformada com a “mediocracia”. Retrato de uma geração cujos hedonismo e voluntarismo se esbatem lá fora, na vida: “uma coisa não mudou o/ afã com que ansiamos pelo toque de saída/ (não percebendo que a vida lá fora/ nunca cumpriu” (p. 41). Uma geração que não esteve na revolução, sem mitos fundadores, que chegou já o ditador tinha caído e cuja batalha restante é “levantar cada manhã o/ peso imenso das pálpebras” (p. 23).

E no entanto a moral da história não é a desolação, mas “essa tua saia breve/ o incêndio de estar vivo)/ coisas para lá do uso vil/ do pequeno poder” (p. 48); a batalha é afinal reganhar a vida, ou dela “extrair vida ainda” (p. 51), conjurando, se preciso for, essa heresia pós-moderna, a beleza, como em Nude woman reclining, entre Li Bai e Pessanha (p. 55). Tudo servido com os ingredientes característicos da poesia do autor: observação e notação dos acasos do quotidiano, significação do insignificante, redução da grande escala à pequena escala com o propósito de tornar o poema próximo e reconhecível, sobriedade dos versos, exiguidade adjectival, trabalho de oficina, humor parentético e o império da metonímia que, tendo significado no anterior A parte pelo todo (2009) o livro pela morte (do pai do autor), significa, em Você está aqui, o espaço pelo tempo: por um presente que parece interminável, um presente eterno, um “estar aqui sem fim”, uma still life (p. 51) que, apesar de parada, ainda é vida — porventura vida suficiente para servir de fundamento à procura de algo que transcenda o mero estar.

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