A memória de um condenado
Não há heróis na estreia literária da jornalista Ana Margarida de Carvalho, um romance que parte da história de um sobrevivente do Tarrafal para contar um amor falhado.
É um gesto de fé, aquele de lançar um molho de cartas pela janela do comboio em andamento. “Ao portador destas cartas se roga o encarecido favor de as entregar à menina Maria Luísa Fradinho. Aldeia de Vale de Éguas, Marinha Grande.” Quem as atira assim, espera que um dia elas cheguem ao destinatário. Pouco importa como, e importa ainda menos por intermédio de quem. “Foi através do lápis que Joaquim verteu o seu melhor sangue. Não este que já foi absorvido pelos poros de madeira. Mas aquele mais grosso, denso, escuro, colesterolizado, cheio de trombos e coágulos que engarrafam a veia fina. Muito suou para poder escrever a Luísa. Suportou insultos, privações, desdém, castigos, troça... Esta tarefa sugou-lhe as energias durante os meses de prisão, tomou-lhe de assalto todos os sentidos, depois de a guarda ter arrebanhado os revoltosos do 18 de Janeiro da Marinha Grande.” Em 1934, Joaquim da Cruz, foi preso na sequência desse movimento de protesto e seria um dos homens a estrear o campo de prisioneiros políticos que o Estado Novo mandara construir na ilha do Tarrafal. Ele é o protagonista do romance de estreia da jornalista Ana Margarida de Carvalho, uma história ficcional entre factos e cenários reais, o homem que na viagem entre a prisão e o desterro tem um derradeiro gesto de esperança, o de que Luísa, que prometera esperar por ele sem saber o tempo dessa espera, saiba que o seu amor por ela persiste.
, finalista da última edição do prémio Leya, arranca com a frustração do mensageiro narrada na primeira pessoa. A fúria de alguém que se sente injustamente relegado para segundo plano, o “excluído”, o “suplente”, numa história sobre a qual não volta a ter as rédeas apesar de nela desempenhar um papel determinante. “Sou uma personagem preterida pelo próprio autor, usada para a caminhada hermenêutica e deitada fora do elenco, como um figurante dispensado, que ainda permanece no set, à cata dos restos do catering. (...) A melhor forma de destruir alguém é ignorá-lo”, lamenta-se aquele que encontrou as cartas. É uma das liberdades estilísticas da escritora que ousou arriscar uma forma longe de ser a mais segura para a sua primeira obra. Intercala tempos, experiências, personagens em registos propositadamente desiguais numa narrativa intrincada, fugindo a qualquer linearidade temporal ou de espaço, e sem obedecer a outra cronologia a não ser aquela que é ditada pelo fluir mais ou menos caótico da memória ou do pensamento.
Mais do que política, a revolta que Joaquim carrega na viagem para Cabo Verde é pessoal. “Joaquim é um caso perdido, pensa Lourenço”, colega de destino, a quem a autora entrega a melhor caracterização da sua personagem principal. “...não tem espírito de grupo, não está doutrinado, não possui qualquer enquadramento ideológico, foi apanhado no lugar errado à hora errada e ainda por coma não fez qualquer esforço para sair do círculo em fogo, como os escorpiões, que preferem ferrar-se a si próprios.” Décadas depois, é este homem que Eugénia irá encontrar, o velho sobrevivente do Tarrafal de dedos “nodosos”. A sua missão é escutá-lo. Ele passou o portão que retira todos os direitos aos homens e voltou. Como se vive com e depois do terror? É ela quem constrói a teia à volta dessa pergunta. Eugénia, 37 anos, uma jornalista de televisão que vive no Porto, um pouco mimada, às voltas com o ego e com a tal história que, à partida, não lhe apetece contar, a de Joaquim enquanto herói de uma geografia que na história mais recente dos homens trocou o horror para que foi construída em 1934 pelo turismo da actualidade.
A narrativa que resulta do encontro entre Joaquim e Eugénia, dois mundos, dois tempos, duas histórias de vida que se tocaram numa casa mofienta do Porto, desenrola-se em vinte capítulos, cada um precedido de uma epígrafe que dá como que um mote (mais sobre o estilo do que de tema), e o que resulta é uma miscelânea de contágios da qual a autora desencanta um registo pessoal invulgar, sobretudo se pensarmos que se trata de uma estreia. Esse “amadorismo” raro se sente. Arrisca-se e o que sai é muito mais do que um bonito literário, ainda que aqui e ali as tentações de mostrar o domínio das palavras e dos seus sentidos possam ser evidentes. No entanto, nada que distraia do essencial: o de estarmos perante um bom romance com personagens e ambientes que irão persistir e de uma maturidade autoral que vai rareando. Joaquim não há-de ser o herói. Eugénia adivinha isso ao primeiro encontro. Ele é um dos 152 que estrearam a “gaiola a céu aberto”, um dos inconformados cujo olhar vagueia à procura de um ponto de fuga numa paisagem mais de pó do que de mar. “Montes nus, em forma de ferradura, sem casas nem árvores, pequenas praias de areia negra e o sopé do corcovado da Graciosa. Muitos começam logo ali a conceber os embriões de planos de fuga. Não são homens de ficar à espera de que a porta se abra para saírem. Estão com a mente demasiado ocupada a assimilar o que lhes sucedeu para prestarem atenção ao homenzinho ridículo, o director do campo, capitão de artilharia, que bem tenta captar-lhes as reservas de adrenalina, amedrontá-los pela ameaça, pelos berros, pela espuma que se lhe acumula nos cantos da boca... Inútil. A ameaça está menos no verbo do que na imagem.”