A Quinta onde governava o Coelho Amuado tinha uma dimensão razoável, não era das maiores mas também não era das mais pequenas. Por outro lado, era uma das mais antigas. Fosse quem fosse que a governasse a regra era viajar pelos seus quintais, hortas, campos e até bosques, tentando conhece-la o mais possível. Apesar de todas as viagens, o Coelho Amuado e os seus comparsas pareciam saber pouco do que por lá se passava, especialmente do modo como viviam os animais a quem deviam servir.
Para além do Pato das Portas Travessas, o Coelho Amuado rodeou-se de outros animais para o ajudarem na governação. Um desses ajudantes suscitou inicialmente muita curiosidade, sensação que posteriormente se transformou em antipatia. O Coelho Amuado estava longe de ser o único a ser detestado à medida que os caçadores estrangeiros iam fazendo as suas presas indiscriminadas, e compensado os sobreviventes com as magra rações que deixavam.
Pela Quinta já se tinham habituado a figuras estranhas lá no topo dos cargos de chefia. O Cavaco Seco no poleiro dos Galos sempre causara espanto e estranheza, mas quando viram a Tartarugaspar ficaram sem saber o que pensar. Nunca se tinha visto naquela Quinta uma tartaruga. Aquele estranho animal, que supostamente saberia gerir as magras rações disponíveis, parecia ainda mais manso do que todos eles que eram domésticos. Ficaram baralhados com a sua lentidão. Alguns pensaram que fosse sinal de sabedoria, segurança e moderação. Enganaram-se, tal como quando pensaram que um Cavaco Seco poderia ser útil à Quinta.
A Tartarugaspar, apesar de ter sido apresentada como sábia e conhecedora da realidade da quinta, vivia isolada na sua carapaça, imune a tudo o que vinha de fora. À medida que os seus planos iam sendo aplicados, a Quinta foi abrandando, muito lentamente, até que estagnou. Pior ainda, regrediu mesmo.
O Coelho Amuado ficou impaciente e desesperado ao ver que afinal a Tartarugaspar percebia ainda menos da gestão das rações que ele.
As saídas do Coelho Amuado ficaram perigosas. As suas orelhas, cada vez mais baixas, não conseguiam atenuar os guinchos, gritos, latidos, e todos os sons de protesto dos animais sobreviventes à sua passagem. Alguns queriam atirar-lhe mais do que reclamações, mas já nem comida podre havia e as pedras eram úteis para outras coisas.
Nada parecia ajudar, nem o tempo. Descobriu-se que a Tartarugaspar tinha medo da chuva, e que a culpava pela ruina da Quinta. Ter passado demasiado tempo dentro da sua própria carapaça desabituou-a das coisas naturais. Todos sabiam que sem água nada na quinta crescia, e que a chuva nunca impedira a construção de novas vedações e abrigos.
O desespero foi crescendo e algumas reações começaram a surgir num ou noutro pequeno quintal. Havia quem apelasse àqueles que vinham lá da zona das roseiras, com os espinhos de outrora. Havia quem procurasse soluções completamente novas, mesmo que muitas vezes fossem apenas coisas velhas de outro tempo, mal disfarçadas. Mas a esperança não morreu na velha Quinta.
Nota: continuação do conto “A Quinta do Coelho e o Cavaco Seco”, inserido na novela “A Quinta do Coelho Amuado”