Homem-xamã, Homem-natureza, Homem-sonoro, o artista japonês Akio Suzuki, e o incontornável músico experimental português David Maranha improvisaram, no dia 15 de Junho, uma travessia acústica nocturna, conduzindo o público pelos jardins da Casa de Serralves até ao interior do edifício, no Porto.
Integrado no Ciclo Matérias Vitais, este evento desviou o espectador da habitual relação visual com o mundo para, através do som, ampliar sensorialmente a percepção do espaço, os ecos que emanam dos objectos, o som vivo que se propaga da matéria.
Noite densa, e o público segue no escuro o som fluído de um instrumento de sopro, a pedra-flauta de Suzuki (instrumento primitivo xintoísta, cujos orifícios de sopro resultam de acidentes naturais — arquétipo da fusão homem-natureza-arte que funda a obra de Akio), e o ritmo abafado da percussão de Maranha no seu frame drum (próximo do Daf, instrumento ancestral de origem persa, encontra no adufe português um parente próximo). A ressonância líquida da água que cai, ininterruptamente, pauta o cenário acústico no jardim, enquanto David Maranha agarra o saibro do chão e, em queda, o faz ressoar na pele do frame drum.
Já no interior da Casa de Serralves, Akio opera instrumentos por ele criados: o Analapos, instrumento de ecos (dois cilindros metálicos unidos entre si por uma longa mola em espiral que, activada pela voz ou pelo toque, cria ecos acústicos), e o De Koolmees (marimba com tubos de vidro suspensos), sonoplastia que compõe com outros objectos vulgares dispostos no chão.
Negociando com as sonoridades secas e os ritmos extáticos do frame drum e, em seguida, com os sons magnéticos e minimais do órgão hammond de Maranha, Akio improvisa ecos no Analapos que reverberam em paisagens místicas, sonoridades límpidas com o De Koolmees, intercaladas com delicados toques percussivos com pedras e recos em madeira.
A Casa de Serralves foi habitat de uma experiência intimista e misteriosa, paradoxalmente familiar também, pelos sons e ruídos evocatórios de uma proximidade ancestral com a natureza. Akio Suzuki e David Maranha, catalizadores dessa energia vital, devolveram-na ao público em deambulações sonoras iniciáticas, travessias minimais, redutos longínquos, ecos xamanísticos.
Com um trajecto artístico de mais de quatro décadas, tangente ao movimento Fluxus, Akio Suzuki, a partir da década de setenta, derivou a sua arena experimental para uma escuta atenta e auto-didacta da natureza. De Tokyo para Tango, próximo de Kyoto, o artista procurou depurar o seu sentido sonoro e encontrou o fascínio meditativo nos ecos e no real-life noise.
Segundo o xintoísmo, espiritualidade tradicional japonesa que honra o culto à natureza e aos espíritos Kami, não existe uma fractura entre os humanos, a natureza e estas divindades, partilhando a mesma energia relacional. Também Suzuki e Maranha orquestraram, por instantes, um encontro sonoro cósmico entre o espectador e a simplicidade inefável da natureza, à qual, afinal, sempre regressamos.
Texto elaborado no contexto da colaboração do ciclo Matérias Vitais com o Mais Crítica